"Santo Ofício do Amor"


(conto publicado no livro
"Tratado Secreto de Magia", 2010)

   Comecei a queimar meus escritos, minhas convicções e minha honra. Hoje joguei ao mar meus pertences, minhas ervas, incensos... De fato, meu quarto barato está vazio, ainda que minha alma não esteja assim. 
   Velas iluminam-me enquanto escrevo isto, provavelmente meu último registro do mundo. Eu não gostaria de morrer deixando minha história abafada; eu queria que o mundo soubesse de tudo, mas isso parece impossível agora. Ela me traiu.
   É questão de tempo até que invadam minha casa, atormentem minha alma e ultrajem meu corpo, mas não partirei.
   Desde o começo eu sabia. Em meus sonhos eu a vi, e vi meu fim, caso cruzasse seu caminho. Mas eu nasceria e morreria mil vezes, se isso me proporcionasse suas carícias. Eu a amei e amaria novamente, se isso fosse possível. Em outra vida, um outro momento, em que o amor não pesasse tanto quanto uma bofetada, que faz arder a face atingida.
   Há cerca de um ano a conheci. Ela caminhou até mim como quem sabe o que faz, os olhos vívidos, iluminados, arregalados.
   — Nos conhecemos? — perguntou.
   Sua voz era doce, tal qual a face de menina-moça. O vento me trouxe o cheiro de sua pele fresca, banhada de perfume raro.
   — É certo que não, senhora.
   — Qual seu nome? A que família pertence?
  — Chamam-me de Camila, mas na realidade não tenho nome, tampouco família. Cresci nas ruas, talvez tenha me visto em outra ocasião.
   Ela parecia olhar através de mim, não notando minhas roupas humildes em desigualdade às suas, tão cheias de cores, rendas e fitas.
   — Meu nome é Isabel.
   Parecia-lhe o nome perfeito. Sim, não haveria outro que soasse tão bem.


...


   Camila me acariciou a face, o momento da despedida se aproximava. Era sempre assim, o tempo era curto em nossos encontros.
   — Tenho medo por você, quando assume, tão despreocupadamente não acreditar em Deus, Nosso Senhor. Como consegue viver sem fé?
   Ainda consigo ouvir sua voz, afirmando, sem hesitar:
   — Pois tenho fé, ela apenas não é a convencional. É mais tolo acreditar em um ser invisível, como criador de tão vasto Universo, ou crer que a Natureza, tão sábia e capaz, se fez sozinha, descobrindo-se como uma adolescente?
   — É uma heresia, Camila! — exclamei.
   Temia por ela, o que aconteceria caso fosse denunciada. Fofoqueiras não faltavam por aquelas bandas, principalmente quando Camila representava tanto perigo às mulheres. Não era fina e não tinha bons modos, embora falasse com excelência. Não trajava as melhores roupas, não usava os melhores perfumes, era rudimentar em todos seus atos, mesmo assim, atraía cruel atenção entre os homens, que viravam a cabeça quando ela passava com os pés descalços, demonstrando liberdade.
   — Nós duas aqui, nesta cama, também seria considerado heresia por eles — ela disse, calma.
   Levantei-me e fiz o sinal da cruz, nervosa.
   — Não fale isso nem por brincadeira! Nunca poderá acontecer. Seríamos queimadas as duas, vivas!
   — Não, eu seria. Você seria protegida pela influência de seu marido. No máximo, sua pena seria cumprida com alguns meses de aprisionamento.
   Voltei-me para ela, apavorada.
   — Ele nunca me perdoaria — levei os dedos aos lábios. — E se fosse assim, com você eu preferiria morrer, pois a vida não teria sentido sem nossos encontros.


...


   Senti um arrepio na espinha. Eu sabia, não era verdade! Mesmo assim, ouvir aquilo de seus lábios me tocava.
   Não conseguiria viver sem Isabel, sem seus beijos, suas carícias, sua voz, seu corpo. Mas Isabel se sairia bem sem nossa brilhante farsa. Era uma mulher entediada, o encanto logo passaria, embora me amasse, sim. Isso eu vi, ninguém precisava me dizer. E Filipa bem que me alertou.
   Mas Filipa é apenas uma mulher apaixonada, esperando que eu me decepcione e corra para seus braços.
   Se ela soubesse que, mesmo agora, quando a morte vem a cavalo para minha casa, continuo aqui, revivendo meus momentos com Isabel... Se ela soubesse que prefiro morrer a ter de viver sem aquela mulher...


...



   — Não tem medo da morte? — perguntei, sentando-me, seminua, na beirada da cama.
   O modo de vida de Camila despertava meu interesse. Seus conceitos de felicidade, ainda que sem um tostão furado no bolso, suas crenças diabólicas que me faziam tremer em cólicas. Ela era selvagem e exalava vida. A vida que me faltava, mas que entrava em minha alma junto daqueles devaneios de todas as tardes, nós duas na cama, me fazendo corar...
   — Tenho medo da traição e do vazio que isto causa no peito. Tenho medo da desonra à minha alma e a meus ideais. Da morte não, ela sempre chega, por um motivo ou por outro.
   — Sua religião não garante imortalidade, então? — perguntei, irônica.
   — Quem é imortal, Isabel? Não tenho religião, sou livre para pensar.
   — Mas e aquelas orações?
   — Minhas preces são feitas em prol da humanidade, para que a mesquinharia e maldade sejam extintas. Não é um pedido a nenhuma divindade, é um desejo aos seres viventes.
   — E as visões?
   — O que tem?
   — Elas me assustam.
   — Elas me assustam também.



...



   Não sou uma bruxa. As mulheres daqui assim me veem e, mesmo detestando-me, muitas delas pedem meu auxílio, buscando a paixão daqueles que reinam em seus corações. Eu lhes digo verdades óbvias, incentivo-as, faço minhas preces, dou-lhes pedras cheias de energia positiva. Transmito o que me acalenta a alma.
   Vez por outra, vejo-as antes que me surjam, então de fato digo-lhes seu futuro. Ou ao menos a parte que elas gostariam de ouvir.
   Certa vez, Isabel me perguntou:
   — O que suas visões mostram sobre nosso futuro em comum? Amor eterno, certamente!
   — O nosso futuro será mostrado quando o vivermos. Antes disso, nada há para ser dito.



...



   Quando fui para casa naquela tarde, meu marido me aguardava. Era estranho, ele nunca chegava antes de a lua estar alta no céu.
   Aproximei-me, pronta para lhe beijar a face, mas meu rosto foi atingido por sua mão, que não teve dó em me açoitar. Antes que eu pudesse dizer algo, ele vociferou:
   — Com que coragem mancha meu nome de tal maneira?
   — De que fala? Nada fiz que possa recair de forma negativa sobre seu nome!
  — Não teria eu, homem acostumado com a guerra e absurdos da vida, coragem para repetir o que soube de lábios confiáveis! Você sabe o que fez e pagará por isto!
   — Não — tremi.
   — Mandarei que a queimem junto com aquela feiticeira, sua amante!
   — Não — repeti, e me atirei a seus pés, em súplica. — Não quero tal morte, meu amor. Nada fiz, não sei do que fala!
   — Não negue, pequena meretriz!
  — Não me chame assim! — pedi, como se aquilo doesse mais do que a bofetada anterior.
   — É isso que você é!
   Tive medo da morte na fogueira, de ser exposta de tal forma em praça pública, enquanto sussurrariam sobre minha honra.
   Não hesitei, e foi então que descobri meu pecado, que não era trair meu marido com uma mulher, mas temer a morte e a língua das pessoas. Minha traição à Camila foi meu maior pecado!
   — Fui enfeitiçada! Ela é uma bruxa. Com suas pedras e seus truques me enfeitiçou e eu não fui capaz de sair do feitiço até que fosse tarde demais... — disse, entre soluços.



...



   Enquanto ela me denunciava, usando ainda uma mentira, caí, vendo tudo, sentindo seu medo e sua falta de consideração. Mas vi também seu lamento quando já era tarde demais.
   Vi minha morte, me vi amarrada, enquanto o fogo subia por meu corpo, queimando, fazendo arder minha pele. E morri por antecipação, prevendo toda aquela dor que não encarei sozinha, mas com outras mulheres, vítimas de uma época selvagem, ligeiramente banal.
  E Isabel, de pé, afastada, deixando cair mísera lágrima por meu cruel destino, concretizado por amá-la.




...




   Fui perdoada, nada me aconteceu. Camila, no entanto... Estive em sua execução, sem ter a audácia de me mostrar, envolta em panos e rendas negras. De luto.
   Teria ela visto tudo aquilo? Em suas visões, ela vira a própria morte, causada por meu medo?
   Não menti. A vida sem Camila não fazia sentido. E eu continuei sem sentir vida, sendo humilhada por meu marido, que não aguentava a traição, que não conseguia me olhar sem lembrar o ocorrido. Mantínhamos uma farsa perante a sociedade.


...



   Senti o vento, que parecia assoprar as chamas, só que em menor proporção do que elas surgiam.
   Senti, mas não fora aquele meu fim. Meu fim ainda estava por vir, aquilo era apenas uma amostra. Uma cruel amostra da vida, que me mandava correr, fugir de minha dádiva, que costumava vir da coragem.
   Reneguei meus instintos.
   Adeus, Isabel, este não é o fim.
   É apenas o começo do suplício.



...




   Camila colocou o escrito em uma caixa de madeira, escondendo-o em um buraco na terra, sem saber que Isabel, meses depois, faria o mesmo.
   Anos se passariam até que as histórias cruzadas fossem lidas por alguém que se compadeceria e choraria por elas.
   Muitos mais passariam, porém, até que uma nova chance fosse dada àquele amor antigo, envolto em tragédias, finais e recomeços.