domingo, 29 de abril de 2018

o peixe

   Hoje somos eu e esse Peixe, que dança desajeitadamente em seu aquário, cortando a água com sua calda preta e majestosa feito a seda mais cara desse mundo. Ele tem olhos maiores do que os dos peixes de outras espécies, e parece estar sempre nos olhando bem no fundo da alma, mas na verdade é quase cego. 
   Eu e esse Peixe — em ambiente propício poderíamos ser grandes, mas aqui teremos sorte se não sufocarmos com a toxicidade da nossa própria merda.
   Nunca pensei em ter um peixe. Não por não gostar dos mesmos, mas por ter por eles, ao contrário, uma estima acima da média. O suficiente para não querer fazê-los refém. Todos se preocupam com cães e gatos, e todos conseguem se indignar com o destino dos pássaros domesticados... Mas quem entende os peixes? Quem assimila que, assim como qualquer bicho, eles são capazes de sentir dor, amor, gratidão, solidão...? Até alguns "vegetarianos" desconsideram-nos enquanto seres vivos e os comem. Peixes ornamentais! O ultraje! Humanos, como sempre, rebaixando seres a coisas!
    Eu não queria. Não pensava. Mas esse Peixe, ele veio pra mim. Compartilhamos todas as características mais básicas do ser.
   Ele é uma coisinha comilona, comprado como brinquedo para uma criança que logo enjoou do presente, e passava, então, todo seu tempo sozinho, nadando a esmo em sua pequena prisão.
    Acho que sequestrei o Peixe, e não planejo devolvê-lo ou pedir resgate. Agora ficamos nós dois e a borboleta de plástico presa na parede, iluminados por luzes coloridas de LED, ao som de música ultrapassada. Assim vamos tapando os buracos da nossa solidão.
   Às vezes ele fica parado por tempo demais, e num sobressalto eu bato com meu dedo indicador em sua parede de vidro, até que ele recomeça seu nado, olhando, olhando, sem ver nada.
   Esse Peixe sou eu e eu sou esse Peixe, porque também sei o que é ser adquirida como brinquedo e descartada quando o encanto passa. Eu também sei o que é viver em uma prisão de luxo; ser incapaz de fugir, porque a domesticação é mais forte do que a vontade de viver.
   Será que ele sabe que eu o estou usando mais do que o ajudando?
   Algo me diz que os seres vivos sempre sabem. Até os peixes.