segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

traição

   Somos traidores de nós mesmos. Nossas cabeças nos trai constantemente, nossos corações mais ainda... Porém nada em nossos corpos ou essência jamais nos trairá mais do que nossos olhos. 
   Chamem de clichê se quiserem, mas é a mais pura verdade: os olhos são as janelas para as nossas almas. Bom, ou ao menos para nossos sentimentos e intenções mais genuínas - e o que é alma?
  Posso atestar isso, e acho que qualquer pessoa que foi criada por uma figura feminina (seja mãe, tia, vó, irmã etc) também pode, se puxar um pouco na memória: mulheres têm esse dom ainda mais aguçado, o de dizer as coisas com o olhar. E isso se estende para relacionamentos amorosos, porque quando uma mulher ama um homem, ela instintivamente assume o papel de "mãe". Se você já se relacionou com uma mulher, você conhece o olhar. Você já recebeu o olhar.
   Não era minha mãe, mas seus olhos, que me viravam do avesso quando eu fazia algo de errado. A antecipação. Eram seus olhos, também, que indicavam ao meu irmão, quando ele aprontava na igreja, que ele deveria se dirigir ao banheiro para apanhar por sua desobediência. Não que ele entendesse sempre, porque garotos são lerdos, mas eu via bem nitidamente aqueles olhos dizendo "ou você vai, ou eu vou te arrastar na frente de todo mundo".
   Muitas vezes a boca diz uma coisa e os olhos dizem outra. Já ouvi, ao mesmo tempo, da mesma pessoa, um "eu te amo" e um "você sabe que não é verdade". As pessoas são transparentes assim, se você souber o que analisar. 
   A vida inteira senti a reprimenda no olhar das pessoas. A decepção nos olhos do meu professor ao me pegar colando foi o maior castigo que ele poderia me dar. O olhar de um amigo diante de uma fala minha me fez sentir mais estúpida do que se ele tivesse dito qualquer coisa. Nos olhos do meu pai eu me sinto órfã. Quando um dos meus irmãos me olha, às vezes eu vejo que ele me acha verdadeiramente linda. 
   E também já recebi uma séria acusação: "eu vi nos seus olhos que você me achou repulsiva". ...
   Sábado eu coloquei um dos meus vestidos novos e decidi tentar sair sem sutiã — tenho tentado me livrar deles, com sucesso em casa, porém fracasso na hora de sair em público. Peguei a deixa nas alças ciganinhas do vestido e não coloquei o dito cujo. Por baixo da peça, uma calcinha cavada que marcava o vestido; a faixa de renda nas coxas que ficava a mostra quando o vestido subia, nos lábios um batom vermelho berrante, mais destacado ainda pelos meus cabelos negros, e blush cor de rosa no rosto. As botas de salto nos pés. Me olhei no espelho. Me senti vulgar — tão viva —, e vi em meus próprios olhos a aprovação. Eu consigo. É só um sutiã. São só seios. Bolsas de gordura. Foda-se.
   Mas quando eu desci as escadas e saí para o quintal, onde a minha vó estava, em companhia de outras pessoas, ela me olhou dos pés à cabeça e seus olhos revelaram total desgosto. A minha vó é submissa e "educada", porque é de uma época em que mulheres deveriam ser assim em todos os aspectos da vida. Então ela raramente expressa seus pensamentos através da fala, muito menos na frente de outras pessoas. Mas seu olhar sempre diz exatamente o que ela está pensando, e para mim, raramente há elogios. 
   Ali, sem nenhuma palavra, ela me deu um sermão completo sobre moral e bons costumes, que eu não sou uma mulher correta, e que vestidos me deixam mais gorda. E você realmente está sem sutiã?
   Desviei os olhos, me despedi e saí rua afora. Andei em direção ao ponto de ônibus.
   Estava no meio do caminho, e todos que me olhavam pareciam concordar com a minha avó - e não era suas próprias opiniões o que estava me incomodando, mas o lembrete constante da opinião da minha avó e seus olhos severos. Parei, olhei o relógio. Estava atrasada, mas dei meia volta, caminhando rumo à minha casa o mais depressa e naturalmente possível.
   Passei, pela segunda vez, pelo grupinho de garotos que lagarteava na calçada em frente à minha casa, só que dessa vez, subindo, não consegui ignorar seus olhares, e vi em alguns a zombaria e em outros um certo desejo. Abri o portão e me enfiei dentro do quintal novamente. "Esqueci o bilhete", disse, e subi para o meu quarto. Fechei a porta, tirei o vestido, tirei a calcinha, tirei as botas, liguei o ventilador e fiquei na frente dele.
   Então, recomposta, coloquei uma calcinha que não marca, coloquei o sutiã, suavizei a maquiagem, calcei o all star, me olhei no espelho e meus olhos disseram: "covarde". Tomei meu rumo. Os meninos não estavam mais na calçada.
   Eu geralmente evito os olhos das pessoas. Não pelo que poderei ler neles, mas porque me sinto vulnerável, exposta. Quando converso com as pessoas, eu olho para suas bocas, como se quisesse me apegar ao que elas querem que eu acredite. Às vezes me pergunto se elas notam.
   Tenho, porém, um amigo, que com um magnetismo inexplicável agarra os meus olhos e os cola nos seus. Enquanto conversamos, geralmente sentados frente a frente, eu não consigo desprender meus olhos dos dele, por mais que eu tente. Me sinto intimidada. O desconforto me atinge de tal forma, que eu fico subitamente ciente de tudo que compõe meu corpo e minha vida.  Não consigo ouvir muito do que ele diz com a voz, apenas o que seus olhos deixam escapar. Ele é provavelmente a pessoa mais sincera que conheço. 
   E eu, que me exponho tanto na internet, que me acho tão sincera e encho a boca para falar da minha rebeldia, gostaria de fechar meus olhos para que eles não entregassem nada a meu respeito. Vejo meus próprios olhos refletidos nos olhos dele; neles, algo devastador. Às vezes me pergunto se as pessoas notam.