domingo, 31 de dezembro de 2017

Quando acaba

   Tem algumas coisas que não importa quantas vezes nos digam, nós não iremos entender, a menos que estejamos dentro da situação. Esse ano eu consegui compreender uma coisa que sempre me disseram, e que se eu tivesse assimilado antes, não teria sofrido tanto quanto sofri: homens gostam do que não podem ter. É a chamada "cultura do estupro".
   Quando eu transei pela primeira vez, aos 21 anos, eu não estava pronta. Era de se esperar que eu estivesse, na época em que vivemos. Mas eu não estava, e tampouco estava o meu parceiro apto a entender minhas necessidades e personalidade esquiva.
   O Alexandre não foi o pior cara com quem fiquei. Em retrospecto, ele provavelmente foi o melhor (ou o menos pior?).
   Na época, porém, eu não sabia lidar com os meus desejos nem com os desejos do outro; não sabia lidar com o meu corpo, com a minha imagem perante um homem, mesmo um cujo desejo se mostrava de forma inegável. Se na primeira vez ele foi fofo, justamente por saber que era a primeira vez, o resto do que tivemos foi um jogo que eu não sabia jogar.
   Ele queria que eu me soltasse, queria que eu fosse safada, queria me dominar... Mas eu não conseguia ser dominada, tanto por orgulho quanto por não  levar um cara de um metro e sessenta e cinco tão a sério.
   Eu ia à casa dele e ficávamos ali, um diante do outro, ele esperando que eu dissesse o que eu queria dele, esperando que eu agisse. Eu queria e ele queria, ambos sabíamos, mas essa era a regra dele, a iniciativa teria que ser minha dali em diante. 
   As palavras "me fode" nunca sairiam da minha boca, então não havia foda nenhuma na maioria das vezes. Ele era capaz de abdicar dos próprios desejos para continuar seu jogo. 
   Ele achava, e me disse, que eu não era louca o suficiente, e essa afirmação foi pior para o meu ego do que ele me chamar de gorda, palavra até então pejorativa.
   Tem essa trava em mim. Eu posso dizer qualquer coisa através de palavras escritas, mas quando elas saem em forma de som, um abismo se abre abaixo de mim e eu caio de forma violenta e contínua.
   Era questão de tempo, entretanto, até ele se cansar do nosso jogo de gato e rato, e um dia ele encontrou uma nova jogadora, provavelmente uma que sabia como jogar o jogo da maneira certa. Foi simples, ele foi direto ao ponto e me disse com todas as letras: "o tesão acabou". Foi isso. Engoli seco. Por um tempo sofri, confesso. Não por gostar dele, não porque ele fosse bom de cama, mas porque a minha substituta era tudo que eu queria ser e não era.
   No começo desse ano eu estava me sentindo diferente. Minha vaidade estava voltando, depois de longos anos. A confiança na minha auto-imagem estava sendo reconstruída. E a necessidade de um corpo colado no meu era latente. Eu estava no meio do deserto, sedenta por paixão... e conheci o Emanuel.
   Um cara inteligente e carismático, que sempre sabia o que dizer e que priorizava a minha inteligência acima da minha aparência. Um cara que dizia sentir tesão pelo meu cérebro. Era o meu intelecto que o deixava de pau duro, ele afirmava.
   E muito rapidamente, deslumbrada, eu acreditei em sua sinceridade. Tão rápido quanto, nós saímos dos papos intelectuais e caímos em papos meramente sexuais. Nesse ponto eu recuei com todas as forças que tive. Eu era, novamente, um ratinho assustado diante de suas palavras ardentes. Um misto de tesão e medo tomava conta de mim e o meu cérebro exigia que eu me afastasse imediatamente. O meu coração queria que eu ficasse. 
   O cérebro a princípio ganhou e eu lhe disse que não poderíamos continuar conversando. Ele se recusou a aceitar isso. Não queria — não iria —, me disse, abrir mão de uma mulher como eu.
   Tudo era demais e assustador para mim, mas a minha mente, certamente entorpecida pelo meu coração, me garantia que se eu fosse adiante e o bloqueasse, coisa que fiz (e depois desfiz), eu iria me arrepender futuramente. Infelizmente muitas vezes me falta sensatez.
   Na dança inicial, ele evadindo e eu recuando, muitas vezes chocada e arrebatada pela lascividade de sua abordagem, eu era, ainda assim, ingênua e moldável. E ele um escultor talentoso. Eu dizia não, e quanto mais o dizia, mais ele queria o meu sim. Com sagacidade ele foi conquistando sim após sim, tudo muito rápido.
   O Emanuel é um homem que sabe o que quer e como conseguir. Ele é o dominador que o Alexandre nunca conseguirá ser. Seus jogos mentais são muito efetivos. Ele nunca forçou um "me fode", os tirou de forma graciosa da minha boca... não, do meu corpo inteiro.
   E então eu era completamente dele, e o queria completamente. Descobri que aquele jogo era prazeroso e que eu era boa nele. Ledo engano: estávamos jogando jogos similares, mas com regras ligeiramente diferentes.
   Eu sabia que não iria durar pra sempre. Sabia que era questão de tempo, mas imaginei que fosse durar mais. Eu era tudo o que ele queria que eu fosse, sempre havia sido, mas até então me faltara a pessoa certa para trazer tudo isso à tona... Mas homens querem apenas aquilo que não podem ter. Quando conseguem o que querem, o brinquedo deixa de ser interessante.
   Eu o coloquei em um altar e não escondi nem dele e nem de ninguém. Todo mundo me dizia: "Cíntia, isso não se faz... ele vai pisar em você". Mas eu queria acreditar na palavra dele de que ele "não era um babaca". Eu queria acreditar em alguma coisa, em alguém...
   As coisas logo começaram a escapar entre os meus dedos. A atenção que ele me dispensava começou a ser dosada. Eu sabia que estávamos em um novo nível do jogo, e aquele não me agradava em nada. Não era um jogo que proporcionava prazer, era um jogo mental e doentio, que também me deixava doentia.
   Então ficou óbvio que as coisas estavam caminhando para o fim porque eu alimentei demais o ego dele. E eu pensava nas palavras do Alexandre: "o tesão acabou", e imaginava o que o Emanuel me diria quando estivesse definitivamente farto. O que eu não esperava era o que veio.
   Eu posso ter jogado a parte sexual muito bem, mas falhei miseravelmente em aderir aos métodos sociais, os quais sempre repudiei. Nós vivemos em uma sociedade na qual você não pode expressar seus sentimentos verdadeiros. É necessário sempre fingir que gostamos menos do que realmente gostamos, senão corremos o risco de ficar sem nada. Excesso de querer causa repulsa.
   Com rejeição eu consigo lidar. A vida inteira eu fui rejeitada: pela minha família, por meus amigos, por colegas de escola, pela sociedade inteira e por mim mesma. O que eu não consigo encarar é o silêncio, a ausência, a omissão, ainda mais partindo de uma pessoa que tem total domínio sobre as palavras e que poderia, se quisesse, aliviar meu sofrimento. Não sei me frear diante de incertezas, eu vou indo até ouvir um não definitivo.
   O Emanuel nunca me disse não. Ele nunca disse que o tesão acabou. Ele me deu "talvez" e "um dia"... nunca colocou um ponto final. Pelo contrário, ele alimentou as minhas esperanças até o fim, me deixando de joelhos calejados diante de si, servindo o objetivo único de satisfazer seu ego e mostrar que no jogo, ele é o mestre. Já eu, nunca tive muita sorte no jogo. Eu sempre perco.
   Quando acaba, ouvir que o tesão se esgotou faz sentido. Negar um "não" é pura crueldade.