terça-feira, 26 de dezembro de 2017

na volta a gente compra

   Às vezes eu preciso me tratar feito criança. Sabe a típica frase, "na volta a gente compra", que todo adulto diz, porém nunca concretiza? 
   Na volta eles sempre fazem outro caminho, e o objeto de desejo da criança, lá na outra direção, fica fora de alcance.
   O meu objeto de desejo está sempre na minha gaveta, ao alcance das minhas mãos, e particularmente de madrugada, ele grita meu nome. 
   Olho para a lista de contatos do meu Facebook, mas não tem ninguém disponível, nem online e nem emocionalmente. Penso em entrar no Bate Papo Uol e falar putaria para atrair a atenção de alguém e ter com quem conversar. Ouço música e navego por todas as minhas redes sociais: nenhuma notificação. Adulta, tento distrair a criança do que ela quer.
   Mas não distraio nem minha cabeça e nem a minha pele do que elas querem. As lâminas, que estão na gaveta, chamam o meu nome.
   Enquanto eu finjo distração, vejo flashes da caixinha dentro da gaveta, das lâminas enroladas no papelzinho protetor. Gosto de lâminas novas, de abrir o papelzinho colado e sentir a cola sendo rompida. E gosto do barulho da lâmina sendo partida ao meio, o estralo que faz entre os meus dedos. Como tudo na vida, o ritual é mais prazeroso do que a ação. 
   Eu digo: "hoje não, Cíntia. Amanhã". E às vezes eu consigo me enganar, sendo ao mesmo tempo a adulta que tenta pregar a peça, e a criança, que, esperançosa, sempre cai na mentira.
   Todos os dias eu me digo "amanhã", e assim eu vou levando até que a tortura psicológica chegue ao limite e eu abra a gaveta, tirando-as lá de dentro, colocando o ritual em prática.
   Hoje eu só consigo pensar nessa maldita caixinha. Se eu estender o braço, alcanço-a. Amanhã. Amanhã. Eu já ouvi dois álbuns, já vi todas as minhas redes sociais vazias. Na volta. Eu já vi, com um misto de tristeza e raiva, a minha curta lista de contatos. Amanhã. Eu abri algumas janelas e vi mensagens minhas não respondidas, de dias ou até semanas atrás. Amanhã. 
   O magnetismo insuportável dentro do meu corpo vai ficando mais forte. Eu deixo todas as coisas para amanhã, e quando eu vou dormir, choro e peço ao Universo para não acordar amanhã.
   A adulta estava indo muito bem em sua mentira bem-intencionada, mas a criança fica impaciente e começa a gritar e chorar na rua. HOJE.
   Eu quase consigo sentir. Já vejo a lâmina deslizando na minha pele, e o sangue escorrendo, quente e lento a princípio e depois muito rápido, pingando no chão. Um corte não é suficiente, eu continuo, outro e outro, e quando acaba, o abismo que existe na minha alma se torna ainda mais profundo.
   Limpo o sangue e fico nervosa porque ele não para de escorrer. Já acabou, chega. Mas ele continua, vai manchar meu lençol.
   As lâminas cumpriram sua função. A caixinha volta pra gaveta — mas nem a adulta e nem a criança saíram ganhando.