sábado, 4 de novembro de 2017

só por uma noite

   Conversava com um rapaz cheio de pintas no rosto, primeiro sentados lado a lado, e depois ele se levantou e ficou diante de mim. Um cara que a princípio se mostrou bastante tímido, e por isso atraiu minha atenção. Tentei engatar uma conversa sobre Terrorismo Poético, mas ele não entendeu o tipo de terrorismo que eu estava propondo. Perguntei se ele é artista, ele me disse que gostaria de ser artista de palco, e eu estava a ponto de encorajá-lo, quando um de seus amigos se aproximou de nós e perguntou: "O que significa essa tatuagem no seu pescoço?". "Aberração", informei.
   O cara tímido, que por sinal atende pelo apelido Beto, começou a questionar o porquê de eu tê-la feito, ainda mais num lugar tão exposto. "Não é uma coisa negativa", afirmei. "É uma auto-afirmação. Eu sou uma aberração... de corpo e alma" - disse, omitindo que essa frase é de uma música do Silverchair.
   Ele ficou indignado: "você não é uma aberração, você é linda". E eu repeti: "não se trata disso. Diante da sociedade eu sou uma aberração, sou diferente deles em todos os aspectos, e isso não é ruim. Foda-se a sociedade". "Você está certa, foda-se a sociedade, o padrão. Mas você não é uma aberração", e insistiu: "você é uma mulher linda!".  "Obrigada", respondi "mas realmente não é algo negativo. Você sabia que existem borboletas sem asas?" (e levantei, porque não gosto de conversar com pessoas quando elas estão acima de mim). "Sim" ele disse, embora eu saiba que é mentira. "Pois bem, elas são lindas, mas são consideradas aberrações da natureza, porque são diferentes das demais". 
   O amigo dele voltou a ficar em foco. Não sei se ele permanecera ali ou se tinha acabado de voltar, pois eu estava um pouco alterada e concentrada no rapaz tímido. O amigo dele perguntou: "Quem é esse no seu peito?". "Augusto dos Anjos", eu disse. Um deles questionou "é um poeta, né?", eu assenti. Eles se colocaram à minha frente e leram juntos (o Beto passando o dedo pelas linhas traçadas no meu peito: "O coração do poeta é um hospital onde morreram todos os doentes". Eles ficaram impressionados. "Eu acho que o conheço", alguém me disse. "O poema mais conhecido dele é..." comecei, mas minha mente ficou subitamente vazia; a bebida e a maconha que estava sendo passada de boca em boca surtindo seu efeito... Versos Íntimos, caralho! - "Qual o livro mais famoso dele?", o Beto perguntou, me salvando. "Eu e Outras Poesias", disse. Pelo menos isso! 
   Ele estava muito próximo de mim, nossos corpos roçando. Seu amigo se afastou, ou eu parei de prestar atenção de novo. O Beto continuava inconformado: "queria entender porque você tatuou isso nesse lugar... você queria chocar?" perguntou e passou os dedos sobre a tatuagem. Eu reafirmei os pensamentos anteriores, e ele continuou na tecla: "Tudo bem, mas você não é uma aberração - é uma mulher linda e gostosa". "Eu sei", respondi. Ele beijou meu rosto. "Você é muito gostosa", repetiu, e o meu amigo chegou no meio dessa declaração. Me abraçou pela cintura e disse: "Ai, é mesmo! Minha amiga é maravilhosa, né?", e o Beto disse: "Sim, ela é linda", e ambos beijaram o meu rosto, não sei quem primeiro. O meu amigo saiu de cena e o Beto, cujo corpo continuava esbarrando no meu, passou as mãos pelos meus cabelos e beijou minha testa: "Você é maravilhosa".  "E você tem um monte de pintas", observei. "Tenho pelo corpo todo. Até no pau", e antes que eu pudesse responder esse comentário, que senti que escapou sem intenção pois sua voz morreu no final, ele levantou a camiseta e me disse que tinha uma pinta na altura das costelas. Mas não tinha nenhuma pinta. "Ah, então é do outro lado", e mandou eu levantar sua camiseta, o que eu fiz, e vi a pinta. Um formato bastante peculiar. Ele me contou que aquela era a pinta preferida de sua mãe, que faleceu seis meses atrás. Não soube o que dizer. Passei o dedo na pinta e desci com as unhas por sua pele negra e macia, pensando em como seria bom poder beijar a pinta, lambê-la, descer minha língua por aquela pele lisa, mas afastei meu dedo antes de chegar na altura de seu ventre. Abaixei a camiseta e engoli o excesso de saliva. Ele me mandou levantar de novo e eu repeti o ato. A camiseta abaixada, lhe beijei o rosto. Ele beijou o meu uma, duas, três vezes, me deu um selinho segurando meu rosto, eu retribui, e num instante nossas línguas estavam enlaçadas, nossas bocas traçando beijos ardentes. Ele me abraçou e desceu os braços, pousando suas mãos um pouco abaixo do meu quadril, me puxando para si. Passei meus braços em torno do seu corpo e deslizei a mão para dentro de sua camiseta por um momento, tocando-lhe a pele, mas me contive e subi a mão, tocando seu braço, subindo pro pescoço, parando em seu rosto.
   "Cíntia!", ouvi minha amiga gritar, e interrompemos o beijo. "Sim?". "Você está bem?" ela me perguntou, se aproximando, e eu assenti. O Beto ficou contrariado. "Você está realmente bem?", ela perguntou "ou está muito bêbada?", "estou bem", repeti. "Se você está fazendo isso porque quer tudo bem, mas se não souber o que está fazendo...", o Beto demonstrou sua insatisfação em voz alta, como se tal suposição o ofendesse. "Não estou entendendo, nós somos todos adultos de mente aberta", ele disse, talvez não nessas palavras. "Ela só está preocupada comigo", eu disse. "Se vocês dois querem então tudo bem, continuem", ela disse, nos aproximando, mas eu não sabia como retomar as coisas, e ele não engoliu tão fácil. Ela saiu de cena. "Qual é a dela?", ele me perguntou. "Ela é minha amiga há muito tempo, só está preocupada". O clima não estava morto, mas precisava ser recarregado. E eu queria mais. Ele me mandou anotar seu telefone. "Não estou usando whatsapp no momento", disse. "Pode ser facebook?" perguntei. Peguei meu celular e tentei digitar seu nome na busca do Facebook, mas estava difícil. Pedi para ele digitar, e ele também se enrolou. "Pode ser por e-mail?", questionei. Ele me mandou anotar, e eu estava fazendo isso quando ele me abraçou por trás e um de seus amigos disse: "Olha onde o Beto já está!".
   Eu guardei o celular prometendo que lhe escreveria, mas duvidando que ele se lembraria de mim ou que responderia. Ele pegou na minha mão, entrelaçamos nossos dedos, e fui pega de surpresa quando ele me girou como numa dança, sob o seu braço, me puxou e me beijou. Eu apoiei meu pé no murinho mais próximo porque estava ficando tonta, não sei se pela leve embriaguez ou se pelos beijos. Beijei suas pintas e desci os lábios para o seu pescoço, lambendo e chupando a pele quente e com um gosto salgado de suor; gosto de gente.
   Voltei para os seus lábios e disse com a boca abafada pela dele: "você é lindo", e sem parar de me beijar ele me disse "VOCÊ é linda" beijo "e gostosa" beijo beijo "você é muito..." pausa e beijo "muito." beijo.
   Muito muito. Às vezes as pessoas se referem a mim dessa forma, como se eu fosse tanto, que não existisse um adjetivo que me descrevesse com exatidão. Eu ainda não sei se isso é um elogio ou uma ofensa, mas quando me dizem isso eu me sinto dentro de um roteiro elaboradamente pensado.
    "Você ainda não viu nada", respondi, ficando nas pontas dos pés e o abraçando ao redor dos ombros. Ele me cedeu equilíbrio. Os lábios dele se encaixavam perfeitamente nos meus, entre os meus, nossas línguas em sintonia, as mãos dele me puxando. "Você é... intensa...", ele disse. "É, eu sou intensa... e louca", assenti. "Tem quem não me queira por isso", confidenciei. "Eu te quero por isso", ele disparou, e me atingiu em cheio, em todos os espaços do meu ser. Corpo, mente, o que mais existir...
   Às vezes a vida nos dá exatamente o que queremos. Nem que seja só por uma noite.