Você ainda estava aqui, as coisas estavam só começando, mas eu já sabia qual era o gosto do seu descaso. Você se demorava. Eu te esperava, mergulhada em ansiedade.
A espera crescia e se transformava em angústia, a qual acabava sempre em revolta. Algo dentro de mim se contorcia com violência, querendo me rasgar, se expulsar de mim com a urgência de uma criança prematura.
Eu colocava as músicas mais tristes que conheço para tocar, tirava minha camiseta; a pele eriçada e a garganta pulsando loucamente pelo que estava por vir. Então o cabo USB, dobrado em dois, estralava nas minhas costas. Eu me açoitava com a máxima força que um ser humano é capaz de açoitar a si mesmo, uma vez, duas, três, outras tantas, até cair curvada sobre a cama, sobre mim mesma, a dor latente e a respiração ofegante pelo esforço. Carrasca de mim mesma.
Depois permanecia inerte por longos minutos, a respiração ficando suave até quase se extinguir. As costas em chamas e as lágrimas fartas entrando nas minhas narinas e boca. Eu me perguntava o que havia de errado comigo... Como eu podia fazer aquilo? Como eu pude desperdiçar a minha vida inteira ferindo o meu próprio corpo para demonstrar o quanto as pessoas estavam me ferindo por dentro?
Tudo o que eu conheço desse mundo é a dor que ele produz. Respirar me machuca.
Você riu e disse que eu deveria te chamar quando sentisse vontade de me açoitar, que você o faria por mim.
Agora, quando eu penso nas suas palavras vazias, eu penso em toda a violência que existe dentro de mim. Penso em te ferir, te fazer sangrar, em me ferir, em me fazer sangrar. Mas a bagunça seria tão grande, que deixo o tumor da sua existência ferver e crescer dentro de mim... Por enquanto.
São três horas da manhã. Não há nada para me distrair dessa agonia de existir. Eu fumo um cigarro a cada vez que penso em você. São muitos cigarros. Tomo algumas doses de conhaque para acompanhá-los, para passar o tempo, para conseguir dormir.
Os sábias paulistanos também estão acordados.
E você, anda dormindo bem?
O problema são as pessoas. O ser humano só sabe fazer zona no mundo, na cabeça uns dos outros.
Eu queria reunir todos os sabiás dessa cidade e propôr uma fuga em bando. Voaríamos bem alto, para muito longe. Para algum lugar em que nada mais existisse — um lugar onde pudéssemos dormir como os membros sadios de nossas espécies.