segunda-feira, 27 de novembro de 2017

sabiás

   Você ainda estava aqui, as coisas estavam só começando, mas eu já sabia qual era o gosto do seu descaso. Você se demorava. Eu te esperava, mergulhada em ansiedade. 
   A espera crescia e se transformava em angústia, a qual acabava sempre em revolta. Algo dentro de mim se contorcia com violência, querendo me rasgar, se expulsar de mim com a urgência de uma criança prematura. 
   Eu colocava as músicas mais tristes que conheço para tocar, tirava minha camiseta; a pele eriçada e a garganta pulsando loucamente pelo que estava por vir. Então o cabo USB, dobrado em dois, estralava nas minhas costas. Eu me açoitava com a máxima força que um ser humano é capaz de açoitar a si mesmo, uma vez, duas, três, outras tantas, até cair curvada sobre a cama, sobre mim mesma, a dor latente e a respiração ofegante pelo esforço. Carrasca de mim mesma. 
  Depois permanecia inerte por longos minutos, a respiração ficando suave até quase se extinguir. As costas em chamas e as lágrimas fartas entrando nas minhas narinas e boca. Eu me perguntava o que havia de errado comigo... Como eu podia fazer aquilo? Como eu pude desperdiçar a minha vida inteira ferindo o meu próprio corpo para demonstrar o quanto as pessoas estavam me ferindo por dentro?
   Tudo o que eu conheço desse mundo é a dor que ele produz. Respirar me machuca.
   Você riu e disse que eu deveria te chamar quando sentisse vontade de me açoitar, que você o faria por mim.
   Agora, quando eu penso nas suas palavras vazias, eu penso em toda a violência que existe dentro de mim. Penso em te ferir, te fazer sangrar, em me ferir, em me fazer sangrar. Mas a bagunça seria tão grande, que deixo o tumor da sua existência ferver e crescer dentro de mim... Por enquanto. 
   São três horas da manhã. Não há nada para me distrair dessa agonia de existir. Eu fumo um cigarro a cada vez que penso em você. São muitos cigarros. Tomo algumas doses de conhaque para acompanhá-los, para passar o tempo, para conseguir dormir.
   Os sábias paulistanos também estão acordados.
   E você, anda dormindo bem?
   O problema são as pessoas. O ser humano só sabe fazer zona no mundo, na cabeça uns dos outros.
   Eu queria reunir todos os sabiás dessa cidade e propôr uma fuga em bando. Voaríamos bem alto, para muito longe. Para algum lugar em que nada mais existisse — um lugar onde pudéssemos dormir como os membros sadios de nossas espécies.

sábado, 11 de novembro de 2017

justiça


   Mesmo com todo o meu pessimismo, eu sempre procurei acreditar que as coisas têm uma ordem. Que a vida é feita de ação e reação, e isso me fez relevar, de certa forma, todas as maldades que me impuseram. A esperança de que um dia o mal voltaria para essas pessoas me servia de consolo. A expectativa de que um dia eles receberiam um pouco do próprio veneno me fez aceitar a forma como a minha vida transcorreu. Isso me torna uma pessoa ruim? Querer que as pessoas que me fizeram mal também sofram? Ou me faz conformada, por esperar que a vida se encarregue de me dar "vingança", ao invés de eu mesma buscá-la?
   Um dia, muito tempo atrás, um cara, cansado de me ver sofrer e definhar, me propôs: "você quer que eu mate o seu tio? Se você quiser eu mato. Dou um tiro nele". E eu sei que ele o faria, ele era esse tipo de pessoa. O amei por isso, mas não pude aceitar. Eu tinha 16 anos, cheia de ideais, e matar alguém, ou ordenar a morte de alguém, ainda me era uma coisa incabível. A minha consciência não me deixaria em paz. Eu preferi continuar definhando e esperando que a vida agisse.
   Não se trata de vingança, se trata de justiça. Sim. Eu, logo eu, fui tola o bastante para acreditar, por 27 anos, que pode haver alguma justiça nesse mundo fodido! Mesmo o mundo me mostrando consistentemente nas manchetes de jornais, nos relatos de amigos e na minha própria vida que a justiça é uma utopia. Eu acreditei. Aposto que por essa vocês não esperavam!
   Mas hoje a verdade me atingiu no meio da fuça. Surgiu feito um raio, quando eu menos esperava: não existe justiça. Não há divindades, não há karma, não há energia, não há um sistema cósmico para honrar quem quer que seja...
   Eu luto todos os dias. Luto para continuar viva e para manter minha sanidade. Luto mais do que qualquer pessoa poderá imaginar, mais do que todos pensam. Luto contra mim e por mim, enquanto as pessoas que deram vida e alimento aos meus demônios seguem suas vidas tranquilamente, sempre adiante, sempre prosperando, dormindo feito bebês; enquanto eu não consigo pregar os olhos, com medo das lembranças e indignada enquanto minha vida se esvai.
   Não existe justiça.
   Eles estão sempre felizes, e eu sinto essa angústia que dilacera minha alma.
   Não existe justiça.
   Eles conhecem o amor de uma forma que nunca me será permitido.
   Não existe justiça.
   Eles não se sentem sozinhos ou abandonados nunca.
   Não existe justiça.
   Eu tento ser boa.
   Não existe justiça. E o que eu faço com isso?
   Se não existe justiça, como eu posso continuar lutando, com que forças?
   Não existe justiça. A vida e uma questão de azar ou sorte, tudo da forma mais aleatória possível. Talvez eu devesse arrumar uma arma, no fim das contas, e resolver a questão eu mesma. Porque não existe justiça, e nada mais importa.

"Nem todas as flores têm a mesma sorte,
umas enfeitam a vida e outras enfeitam a morte"   

sábado, 4 de novembro de 2017

só por uma noite

   Conversava com um rapaz cheio de pintas no rosto, primeiro sentados lado a lado, e depois ele se levantou e ficou diante de mim. Um cara que a princípio se mostrou bastante tímido, e por isso atraiu minha atenção. Tentei engatar uma conversa sobre Terrorismo Poético, mas ele não entendeu o tipo de terrorismo que eu estava propondo. Perguntei se ele é artista, ele me disse que gostaria de ser artista de palco, e eu estava a ponto de encorajá-lo, quando um de seus amigos se aproximou de nós e perguntou: "O que significa essa tatuagem no seu pescoço?". "Aberração", informei.
   O cara tímido, que por sinal atende pelo apelido Beto, começou a questionar o porquê de eu tê-la feito, ainda mais num lugar tão exposto. "Não é uma coisa negativa", afirmei. "É uma auto-afirmação. Eu sou uma aberração... de corpo e alma" - disse, omitindo que essa frase é de uma música do Silverchair.
   Ele ficou indignado: "você não é uma aberração, você é linda". E eu repeti: "não se trata disso. Diante da sociedade eu sou uma aberração, sou diferente deles em todos os aspectos, e isso não é ruim. Foda-se a sociedade". "Você está certa, foda-se a sociedade, o padrão. Mas você não é uma aberração", e insistiu: "você é uma mulher linda!".  "Obrigada", respondi "mas realmente não é algo negativo. Você sabia que existem borboletas sem asas?" (e levantei, porque não gosto de conversar com pessoas quando elas estão acima de mim). "Sim" ele disse, embora eu saiba que é mentira. "Pois bem, elas são lindas, mas são consideradas aberrações da natureza, porque são diferentes das demais". 
   O amigo dele voltou a ficar em foco. Não sei se ele permanecera ali ou se tinha acabado de voltar, pois eu estava um pouco alterada e concentrada no rapaz tímido. O amigo dele perguntou: "Quem é esse no seu peito?". "Augusto dos Anjos", eu disse. Um deles questionou "é um poeta, né?", eu assenti. Eles se colocaram à minha frente e leram juntos (o Beto passando o dedo pelas linhas traçadas no meu peito: "O coração do poeta é um hospital onde morreram todos os doentes". Eles ficaram impressionados. "Eu acho que o conheço", alguém me disse. "O poema mais conhecido dele é..." comecei, mas minha mente ficou subitamente vazia; a bebida e a maconha que estava sendo passada de boca em boca surtindo seu efeito... Versos Íntimos, caralho! - "Qual o livro mais famoso dele?", o Beto perguntou, me salvando. "Eu e Outras Poesias", disse. Pelo menos isso! 
   Ele estava muito próximo de mim, nossos corpos roçando. Seu amigo se afastou, ou eu parei de prestar atenção de novo. O Beto continuava inconformado: "queria entender porque você tatuou isso nesse lugar... você queria chocar?" perguntou e passou os dedos sobre a tatuagem. Eu reafirmei os pensamentos anteriores, e ele continuou na tecla: "Tudo bem, mas você não é uma aberração - é uma mulher linda e gostosa". "Eu sei", respondi. Ele beijou meu rosto. "Você é muito gostosa", repetiu, e o meu amigo chegou no meio dessa declaração. Me abraçou pela cintura e disse: "Ai, é mesmo! Minha amiga é maravilhosa, né?", e o Beto disse: "Sim, ela é linda", e ambos beijaram o meu rosto, não sei quem primeiro. O meu amigo saiu de cena e o Beto, cujo corpo continuava esbarrando no meu, passou as mãos pelos meus cabelos e beijou minha testa: "Você é maravilhosa".  "E você tem um monte de pintas", observei. "Tenho pelo corpo todo. Até no pau", e antes que eu pudesse responder esse comentário, que senti que escapou sem intenção pois sua voz morreu no final, ele levantou a camiseta e me disse que tinha uma pinta na altura das costelas. Mas não tinha nenhuma pinta. "Ah, então é do outro lado", e mandou eu levantar sua camiseta, o que eu fiz, e vi a pinta. Um formato bastante peculiar. Ele me contou que aquela era a pinta preferida de sua mãe, que faleceu seis meses atrás. Não soube o que dizer. Passei o dedo na pinta e desci com as unhas por sua pele negra e macia, pensando em como seria bom poder beijar a pinta, lambê-la, descer minha língua por aquela pele lisa, mas afastei meu dedo antes de chegar na altura de seu ventre. Abaixei a camiseta e engoli o excesso de saliva. Ele me mandou levantar de novo e eu repeti o ato. A camiseta abaixada, lhe beijei o rosto. Ele beijou o meu uma, duas, três vezes, me deu um selinho segurando meu rosto, eu retribui, e num instante nossas línguas estavam enlaçadas, nossas bocas traçando beijos ardentes. Ele me abraçou e desceu os braços, pousando suas mãos um pouco abaixo do meu quadril, me puxando para si. Passei meus braços em torno do seu corpo e deslizei a mão para dentro de sua camiseta por um momento, tocando-lhe a pele, mas me contive e subi a mão, tocando seu braço, subindo pro pescoço, parando em seu rosto.
   "Cíntia!", ouvi minha amiga gritar, e interrompemos o beijo. "Sim?". "Você está bem?" ela me perguntou, se aproximando, e eu assenti. O Beto ficou contrariado. "Você está realmente bem?", ela perguntou "ou está muito bêbada?", "estou bem", repeti. "Se você está fazendo isso porque quer tudo bem, mas se não souber o que está fazendo...", o Beto demonstrou sua insatisfação em voz alta, como se tal suposição o ofendesse. "Não estou entendendo, nós somos todos adultos de mente aberta", ele disse, talvez não nessas palavras. "Ela só está preocupada comigo", eu disse. "Se vocês dois querem então tudo bem, continuem", ela disse, nos aproximando, mas eu não sabia como retomar as coisas, e ele não engoliu tão fácil. Ela saiu de cena. "Qual é a dela?", ele me perguntou. "Ela é minha amiga há muito tempo, só está preocupada". O clima não estava morto, mas precisava ser recarregado. E eu queria mais. Ele me mandou anotar seu telefone. "Não estou usando whatsapp no momento", disse. "Pode ser facebook?" perguntei. Peguei meu celular e tentei digitar seu nome na busca do Facebook, mas estava difícil. Pedi para ele digitar, e ele também se enrolou. "Pode ser por e-mail?", questionei. Ele me mandou anotar, e eu estava fazendo isso quando ele me abraçou por trás e um de seus amigos disse: "Olha onde o Beto já está!".
   Eu guardei o celular prometendo que lhe escreveria, mas duvidando que ele se lembraria de mim ou que responderia. Ele pegou na minha mão, entrelaçamos nossos dedos, e fui pega de surpresa quando ele me girou como numa dança, sob o seu braço, me puxou e me beijou. Eu apoiei meu pé no murinho mais próximo porque estava ficando tonta, não sei se pela leve embriaguez ou se pelos beijos. Beijei suas pintas e desci os lábios para o seu pescoço, lambendo e chupando a pele quente e com um gosto salgado de suor; gosto de gente.
   Voltei para os seus lábios e disse com a boca abafada pela dele: "você é lindo", e sem parar de me beijar ele me disse "VOCÊ é linda" beijo "e gostosa" beijo beijo "você é muito..." pausa e beijo "muito." beijo.
   Muito muito. Às vezes as pessoas se referem a mim dessa forma, como se eu fosse tanto, que não existisse um adjetivo que me descrevesse com exatidão. Eu ainda não sei se isso é um elogio ou uma ofensa, mas quando me dizem isso eu me sinto dentro de um roteiro elaboradamente pensado.
    "Você ainda não viu nada", respondi, ficando nas pontas dos pés e o abraçando ao redor dos ombros. Ele me cedeu equilíbrio. Os lábios dele se encaixavam perfeitamente nos meus, entre os meus, nossas línguas em sintonia, as mãos dele me puxando. "Você é... intensa...", ele disse. "É, eu sou intensa... e louca", assenti. "Tem quem não me queira por isso", confidenciei. "Eu te quero por isso", ele disparou, e me atingiu em cheio, em todos os espaços do meu ser. Corpo, mente, o que mais existir...
   Às vezes a vida nos dá exatamente o que queremos. Nem que seja só por uma noite.