terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!