quarta-feira, 18 de outubro de 2017

caixas


   Pedi um tempo do trampo. Todas as cobranças, a ingratidão e a incerteza do que vai acontecer entre um mês e o outro estava me atordoando. Eu não sei viver sob pressão. Simplesmente não consigo, algo dentro de mim fica inquieto e não me deixa em paz. Não durmo, não consigo me concentrar, fico desgastada e como demais ou deixo de comer por completo. Eu consigo sentir o peso da atmosfera, dessa coisa abstrata e incorpórea me esmagando fisicamente, me fazendo ficar com as costas e os ombros curvados. Então eu pedi um tempo. Não sei quando volto. Pode ser amanhã ou pode ser daqui uns meses. Talvez nunca mais.
   Tudo que eu fiz por enquanto foi dormir e tentar ler um livro. Mas estou presa na página 35 e não consigo seguir adiante. O autor é muito prolixo (logo se vê, pois o livro tem 576 páginas). Em alguns momentos prende minha atenção e eu penso: "agora vai", e em outros ele me perde completamente, descrevendo coisas irrelevantes para a história que está tentando contar, ou repetindo pensamentos que já foram estabelecidos. Os autores não entendem que primeiro você tem que fazer o leitor se importar com os personagens, seja através do carisma, da repulsa, ou da admiração, mas algo tem que ser o bastante para alimentar a curiosidade, para fazer com que o leitor tenha disposição para virar a página. E depois, APENAS depois, eles podem se demorar por páginas e páginas descrevendo-os fazendo coisas insignificantes (mas deveriam evitar isso, deixar algumas coisas para a imaginação). Enfim, as coisas têm uma ordem. Não me interessa ler sobre personagens que eu não conheço, e por enquanto os personagens em si mal apareceram, são páginas e páginas de divagações de um protagonista invisível.
   E eu sou uma protagonista invisível, sempre divagando, por isso ninguém me lê.
   Essa tortura literária talvez me caiba perfeitamente, porque apesar de tudo, estou me sentindo culpada por ter cedido e pedido um tempo. Não pelos meus irmãos, que não tiveram consideração comigo, mas por mim mesma. Tenho medo de me tornar mais irrelevante, de não me deixarem voltar, visto que a intenção deles já era me demitir.
   Não posso me divertir muito. Tenho evitado ouvir música. Esse tempo que eu tirei não é para que eu me divirta, é para que eu fique na minha, para que eu pense no que tenho que fazer a seguir. Se eu me mato ou se prossigo nessa existência burocrática, sem sentido, sem carinho, sempre trancafiada entre 4 paredes, em uma casa ou outra.
   O Junior veio aqui no sábado, e sabendo que eu me cortei, me disse: "uma criança fazer isso tudo bem, mas você já é adulta! Já devia ter estabilidade emocional para lidar com os problemas da vida". E o que eu posso responder? O que ele espera que eu faça com isso? Ele acha que vai me curar com tais palavras, que subitamente eu vou ter o que é necessário para viver nesse mundo que me mastiga e me engole, pedaço por pedaço, dia após dia? E que direito ele tem?! Ele, que não sabe mais nada a meu respeito, que mal me viu esse ano! Que não está dentro da minha pele para saber como tudo isso está me matando da forma mais cruel e dolorosa possível!
   Quanta tortura emocional uma pessoa consegue aguentar calada, contando apenas consigo mesma...?
   Estou tomando os meus remédios e tenho permanecido em silêncio absoluto, pensando, pensando, pensando. Penso no Emanuel e nos caras que vierem depois dele. Nos padrões que eu caio. Penso no meu passado e em todas as coisas que eu quero. Penso em tudo que é inatingível, e às vezes me dá muita raiva. Penso em espaços fechados.
   Penso que todo mundo gosta de espaços pequenos, mesmo quem se acha tão selvagem e acima dos engravatados. O mundo é tão grande, mas as pessoas criam limites e barreiras e constroem caixas para viver, para se locomover, para os seus momentos de lazer. As pessoas trabalham dentro de caixas, comem dentro de caixas, fodem dentro de caixas, e usam caixas menores para distrair suas mentes, que também são como caixas muito, muito pequenas. Elas não são tão diferentes de mim. Eu apenas permaneço dentro de uma só caixa por longos períodos de tempo, enquanto elas transitam entre uma caixa e outra. E mesmo quem compra mansões, provavelmente vive a maior parte do tempo em um dos cômodos, o quarto ou a sala ou a biblioteca, atrás de portas fechadas.
   E eu sei porque nós gostamos de espaços pequenos. Nós viemos de um espaço pequeno, o útero. E quando fomos jogados nesse mundo tão imenso, fedorento, barulhento e cruel, perdemos aquela sensação de conforto. Os recém-nascidos precisam de um cobertor que lhes deixe bem apertadinhos para que se sintam confortáveis. E nós, adultos,  precisamos de nossas caixas de concreto ou de metal. E quando morremos, somos enfiados em uma caixa de madeira.
   E eu... eu gosto de espaços pequenos porque sair do útero foi um grande choque, e porque passei boa parte da minha vida em um cômodo pouco maior do que o banheiro de muita gente, com meus dois irmãos e minha mãe e os meus tios me tocando e inserindo suas partes em mim e muitas caixas de brinquedos que nunca tivemos permissão para abrir. E quando a dona do útero para o qual eu sempre penso em voltar não estava lá, eu era colocada dentro de um espaço ainda menor, escuro e úmido, com ratos e baratas e choro do lado de dentro e risos do lado de fora.
   E desde então eu não soube me sentir nem mesmo minimamente confortável em espaços abertos.
  É por isso que eu fico no meu quarto, sentindo o mesmo desconforto e desespero de quando me trancavam naquele porão que eu não consigo esquecer, e com o qual sempre sonho.
   Eu sempre vou ser aquela garota de 6 anos trancada dentro de um porão escuro. E eu fico contente que você, Junior, não seja mais aquele garoto de 5 anos trancado em um porão escuro, e que o Felipe não seja mais aquele garoto de 3 anos trancado dentro de um porão escuro. Mas não me venha falar sobre estabilidade emocional, porque você também tem suas caixas!