quarta-feira, 25 de outubro de 2017

eu não sou de nada

   Não sei porque, mas o meu vestido encolheu. Um ano atrás, quando eu o comprei, ele ficava um pouquinho acima dos meus joelhos. Agora ele mal cobre minha bunda. Se eu ergo os braços, ela fica a um triz de aparecer.
   Gosto dele, apesar de ter sido um erro. Quando eu fui comprar o vestido nessa loja online, pedi um vestido ciganinha preto com glitter e sem estampa, e quando recebi era um vestido-camiseta verde com um tigre feito de lantejoula preta, branca e amarela. Eu não gosto de verde, exceto o verde da parede do vizinho lá de cima, e não morro de amores por tigres. Detesto roupa de adulto com estampa, exceto as nerds, especialmente estampas  feitas de lantejoula. E briguei muito com a vendedora. Eu gritei com ela, ela gritou comigo, mas por fim fiquei com o vestido, porque queria usar em uma festa, nem lembro de quem era, e não dava tempo de comprar em outro lugar. Foi um sucesso. Todo mundo tão contente por ver a Cíntia arrumadinha e felizinha. Parentes distantes e essas coisas.
brincadeira, eu subi um pouquinho nessa foto...
   No fim das contas, tirando o tigre, e tirando o verde, eu gostei bastante de usá-lo. Ele dá um contorno extra ao meu corpo e me faz sentir sexy quando o vento bate de leve. 
   Só que agora ele encolheu, e minhas coxas ficam permanentemente expostas. Ontem eu o coloquei e fui ao centro de Itaim Paulista pagar uma das últimas parcelas dos meus óculos. A pior parte de usar vestido, ainda mais um tão curto, é subir no ônibus. Eu sei que a minha bunda ficou a mostra e eu tentei fazer com que o cara que estava no ponto de ônibus comigo subisse antes de mim, mas ele, muito cavalheiro, insistiu que eu fosse na frente. E quando eu desci, o último degrau sendo muito longe do chão, e eu tendo que dar um pulo, o vestido subiu mais um pouco, e o ponto de ônibus estava razoavelmente cheio. 
   Estava ventando muito e o vestido ficava subindo, e eu puxando pra baixo e ele insistindo em subir e eu tentando segurá-lo, e ele subindo, e o vento batendo e minhas coxas expostas e alguns homens olhando e eu disfarçando o meu desconforto, mais pela desobediência do vestido do que pelos olhares.
   Um cara chegou a parar, me olhou dos pés à cabeça enquanto eu caminhava em sua direção, e voltou seus olhos para os meus olhos, com um sorrisinho muito trambiqueiro; uma cara de quem diz: safada! Mas tirando esse olhar, ele não disse nada. Desviei dele, segui em frente.
   Depois de pagar os óculos eu fui à costumeira lanchonete comer um pedaço de torta, que estava em falta, então sentei para comer um pedaço de pizza, colocando a barra do vestido entre as minhas pernas, minhas coxas aparecendo. Um homem passou com sua namorada e olhou e eu olhei pra ele, e a namorada dele olhou pra mim e eu olhei pra ela, e pensei: "se ela brigar comigo eu digo que estava olhando pra ela e não pra ele", mas ela não disse nada e eles foram embora.
   Na volta foi ainda mais constrangedor subir no ônibus, porque o ponto estava realmente lotado. Mas eu fiz que não liguei e subi, sentindo a brisa na minha bunda.
   Quando eu cheguei em casa continuei de vestido, e depois o meu irmão veio nos visitar, porque havia esquecido as chaves da casa dele no escritório. Eu estava descendo as escadas para fazer sala, e percebi que ele olhou meu vestido, então indaguei: "meu vestido encolheu, né?!" e minha vó entrou no papo (ela é absolutamente contra eu usar vestidos, porque acha que eu fico mais gorda): "você cortou seu vestido? ele está muito curto". E eu disse: "não, acho que encolheu nas lavagens", e ela, desconfiada: "mas mesmo que encolhesse na lavagem, está muito curto...", e eu contei ao meu irmão sobre o cara que me chamou de safada com os olhos, e minha vó fez um "oh!", escandalizada, e meu irmão disse, colocando lenha na fogueira: "a culpa é da senhora que deixa ela sair só de camiseta por aí". E minha vó fez aquela cara de "com coisa que alguém deixa ou desdeixa a Cíntia fazer o que ela quer".
   Depois, no meu quarto, no meio de uma conversa quase quente, eu voltei a me sentir sexy com o vestido. Ainda mais porque tirei o sutiã, e quando esbarrava nos meus próprios seios sentia meus piercings. Eu pensei: "da próxima vez eu poderia sair só de vestido, sem calcinha e sem sutiã", e fiquei entretendo a ideia. A conversa não esquentou o suficiente, mas eu fervi sozinha.
   E hoje, quando fui ao mercado, eu não estava de vestido. Usava um short jeans e uma blusinha comum, e descia a minha rua quando passou um homem muito lindo, indo na direção oposta. Nos olhamos, e ele perguntou: "tudo bem?" e eu respondi: "oi", e ele lambeu os lábios e respondeu: "oi". Desviei o olhar, fiquei olhando pro alto, pras árvores, pro céu, mexi nos meus cabelos e tentei me esconder atrás de mim mesma, sentindo o olhar dele em mim. Mas eu não olhei pra trás, continuei indo. Meu rosto ficou muito quente. Por fim olhei, mas ele já estava terminando de virar a esquina. Fiquei repetindo na minha cabeça oi oi oi oi oi oi e me odiando, sabendo que o meu oi tinha sido o mais seco possível e que eu provavelmente o encarei com uma cara muito brava — faço isso nessas situações. Me remoí por dentro, porque toda vez que um homem fala comigo eu perco a compostura.
   Depois fiquei pensando nele e em todas as coisas que poderíamos fazer. No meu vestido, na língua dele lambendo os próprios lábios antes de me responder: oi.
   Caros leitores. Eu gosto de provocar e gosto de ser provocada, tudo bonitinho... na teoria. Mas na prática, se um homem não me agarrar e...
   Quem me vê falando de meter foder gemer lamber gozar chupar e todas essas palavras que eu uso como bombas de efeito moral, não imagina que quando uma oportunidade surge eu tenho vontade de me esconder debaixo da terra. Ser puta até vai! Agora, ser puta tímida, é de lascar!



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

sonho

   Os risos do lado de fora pararam. Surpresa, eu engoli o choro.
   A escuridão ainda se fazia presente, e por alguns momentos tudo foi silêncio; até que o ranger da porta se abrindo falou mais alto, e seguido a isso veio o som  do canto de pássaros ao longe e o murmúrio do vento circulando com suavidade, como ele faz após uma tempestade; então fui tomada por uma luz forte, de ferir os olhos, que preencheu todos os espaços, iluminou todos os recantos do porão. Por instinto, cobri meu rosto molhado com dedos vacilantes e infantis, e entre o vão deles eu pude ver uma mão saindo do meio de toda aquela claridade. Primeiro eu pensei que a mão estava ali para me ferir, mas ela se aproximou lentamente e parou à minha frente, suspensa, a palma para cima; convidativa.
   Hesitei por alguns segundos, mas aceitei o toque daquela mão quente e firme, que apertou meus dedos entre os seus de forma reconfortante. A mão me puxava, mas eu não queria sair ainda, não sabia o que me esperava lá fora. Meu corpo parou abruptamente. Os dedos dele acariciaram o meu pulso, como que para dizer que estava tudo bem, eu já podia sair.
   Caminhei passos muito lentos, curtos, em direção a luz, e envelheci 21 anos no momento que coloquei meus pés para fora. 
   O porão sumiu atrás de mim e meus olhos se acostumaram a claridade. Eu estava em um campo aberto que se estendia por muitas milhas, e a despeito de todo aquele espaço me fazendo sentir pequena, eu não tive medo; não estava sozinha. Era um campo de trigo; eles subiam, serpenteando por nossas pernas, fazendo cócegas, batiam mesmo em nossas cinturas. Apesar da claridade, o sol não era ardente, e a brisa secou meu rosto com o cheiro de coisas vivas. Cheiro de maçã, de gengibre, de laranja, de coentro e dama-da-noite, cheiro de amor. A mão dele não soltava a minha, que já não era vacilante nem infantil.
   Caminhamos em silêncio, em direção a uma colina muito verde, a qual subimos. No topo, uma árvore que não era frutífera e tinha galhos raros, deixando a luz do sol emitir seus raios entre um e outro. Sem soltar minha mão nós nos deitamos sob a árvore, raios inconstantes refletiam sobre nossos corpos e a brisa contínua trazia, a cada rajada, novos cheiros que pairavam sobre nós — eu com o corpo virado para cima e ele ao meu lado, me olhando atentamente enquanto eu enchia meus pulmões de ar e depois soltava, lenta e calculadamente, querendo absorver tudo aquilo que por tanto tempo esteve fora do meu alcance. Eu via o céu e todas as nuvens que formavam coisas lindas.
   Milimetro por milimetro nossos corpos se aproximaram, sem nunca desatarmos nossas mãos, que suavam uma contra a outra. E pousei minha cabeça sobre seu peito, ouvindo seu coração bater ritmado, sem exageros e sem espantos. Eu não queria queria dormir, tinha medo que tudo estivesse acabado quando eu acordasse, que eu seria levada de volta para o porão. Mas, cansada pelo choro de tantos anos, e embalada pelo vento, pelos cheiros, pelo sol e pelo compasso daquele coração, minhas pálpebras pesaram e cederam. Eu dormi e sonhei. Eu sonhei. 



quarta-feira, 18 de outubro de 2017

caixas


   Pedi um tempo do trampo. Todas as cobranças, a ingratidão e a incerteza do que vai acontecer entre um mês e o outro estava me atordoando. Eu não sei viver sob pressão. Simplesmente não consigo, algo dentro de mim fica inquieto e não me deixa em paz. Não durmo, não consigo me concentrar, fico desgastada e como demais ou deixo de comer por completo. Eu consigo sentir o peso da atmosfera, dessa coisa abstrata e incorpórea me esmagando fisicamente, me fazendo ficar com as costas e os ombros curvados. Então eu pedi um tempo. Não sei quando volto. Pode ser amanhã ou pode ser daqui uns meses. Talvez nunca mais.
   Tudo que eu fiz por enquanto foi dormir e tentar ler um livro. Mas estou presa na página 35 e não consigo seguir adiante. O autor é muito prolixo (logo se vê, pois o livro tem 576 páginas). Em alguns momentos prende minha atenção e eu penso: "agora vai", e em outros ele me perde completamente, descrevendo coisas irrelevantes para a história que está tentando contar, ou repetindo pensamentos que já foram estabelecidos. Os autores não entendem que primeiro você tem que fazer o leitor se importar com os personagens, seja através do carisma, da repulsa, ou da admiração, mas algo tem que ser o bastante para alimentar a curiosidade, para fazer com que o leitor tenha disposição para virar a página. E depois, APENAS depois, eles podem se demorar por páginas e páginas descrevendo-os fazendo coisas insignificantes (mas deveriam evitar isso, deixar algumas coisas para a imaginação). Enfim, as coisas têm uma ordem. Não me interessa ler sobre personagens que eu não conheço, e por enquanto os personagens em si mal apareceram, são páginas e páginas de divagações de um protagonista invisível.
   E eu sou uma protagonista invisível, sempre divagando, por isso ninguém me lê.
   Essa tortura literária talvez me caiba perfeitamente, porque apesar de tudo, estou me sentindo culpada por ter cedido e pedido um tempo. Não pelos meus irmãos, que não tiveram consideração comigo, mas por mim mesma. Tenho medo de me tornar mais irrelevante, de não me deixarem voltar, visto que a intenção deles já era me demitir.
   Não posso me divertir muito. Tenho evitado ouvir música. Esse tempo que eu tirei não é para que eu me divirta, é para que eu fique na minha, para que eu pense no que tenho que fazer a seguir. Se eu me mato ou se prossigo nessa existência burocrática, sem sentido, sem carinho, sempre trancafiada entre 4 paredes, em uma casa ou outra.
   O Junior veio aqui no sábado, e sabendo que eu me cortei, me disse: "uma criança fazer isso tudo bem, mas você já é adulta! Já devia ter estabilidade emocional para lidar com os problemas da vida". E o que eu posso responder? O que ele espera que eu faça com isso? Ele acha que vai me curar com tais palavras, que subitamente eu vou ter o que é necessário para viver nesse mundo que me mastiga e me engole, pedaço por pedaço, dia após dia? E que direito ele tem?! Ele, que não sabe mais nada a meu respeito, que mal me viu esse ano! Que não está dentro da minha pele para saber como tudo isso está me matando da forma mais cruel e dolorosa possível!
   Quanta tortura emocional uma pessoa consegue aguentar calada, contando apenas consigo mesma...?
   Estou tomando os meus remédios e tenho permanecido em silêncio absoluto, pensando, pensando, pensando. Penso no Emanuel e nos caras que vierem depois dele. Nos padrões que eu caio. Penso no meu passado e em todas as coisas que eu quero. Penso em tudo que é inatingível, e às vezes me dá muita raiva. Penso em espaços fechados.
   Penso que todo mundo gosta de espaços pequenos, mesmo quem se acha tão selvagem e acima dos engravatados. O mundo é tão grande, mas as pessoas criam limites e barreiras e constroem caixas para viver, para se locomover, para os seus momentos de lazer. As pessoas trabalham dentro de caixas, comem dentro de caixas, fodem dentro de caixas, e usam caixas menores para distrair suas mentes, que também são como caixas muito, muito pequenas. Elas não são tão diferentes de mim. Eu apenas permaneço dentro de uma só caixa por longos períodos de tempo, enquanto elas transitam entre uma caixa e outra. E mesmo quem compra mansões, provavelmente vive a maior parte do tempo em um dos cômodos, o quarto ou a sala ou a biblioteca, atrás de portas fechadas.
   E eu sei porque nós gostamos de espaços pequenos. Nós viemos de um espaço pequeno, o útero. E quando fomos jogados nesse mundo tão imenso, fedorento, barulhento e cruel, perdemos aquela sensação de conforto. Os recém-nascidos precisam de um cobertor que lhes deixe bem apertadinhos para que se sintam confortáveis. E nós, adultos,  precisamos de nossas caixas de concreto ou de metal. E quando morremos, somos enfiados em uma caixa de madeira.
   E eu... eu gosto de espaços pequenos porque sair do útero foi um grande choque, e porque passei boa parte da minha vida em um cômodo pouco maior do que o banheiro de muita gente, com meus dois irmãos e minha mãe e os meus tios me tocando e inserindo suas partes em mim e muitas caixas de brinquedos que nunca tivemos permissão para abrir. E quando a dona do útero para o qual eu sempre penso em voltar não estava lá, eu era colocada dentro de um espaço ainda menor, escuro e úmido, com ratos e baratas e choro do lado de dentro e risos do lado de fora.
   E desde então eu não soube me sentir nem mesmo minimamente confortável em espaços abertos.
  É por isso que eu fico no meu quarto, sentindo o mesmo desconforto e desespero de quando me trancavam naquele porão que eu não consigo esquecer, e com o qual sempre sonho.
   Eu sempre vou ser aquela garota de 6 anos trancada dentro de um porão escuro. E eu fico contente que você, Junior, não seja mais aquele garoto de 5 anos trancado em um porão escuro, e que o Felipe não seja mais aquele garoto de 3 anos trancado dentro de um porão escuro. Mas não me venha falar sobre estabilidade emocional, porque você também tem suas caixas!



ciclo

   Even though you've got a million best friends 
I don't want the label I just want your presence
I see you as a brother just as much as a best friend 
So I will fight the deeper urge to say "come home" 
'Cause I know you have to go, I know you have to go ♫

   Um ano atrás eu fui lá, montagem fofinha com nossas fotos e as coisas que gostamos, textão professando meu amor por você — e você, em contrapartida, me dizendo que estava chorando com a mensagem, que, veja bem, era sincera.
   Eu lembro da primeira vez que te vi. Eu imediatamente notei que a sua aura é azul. Suas mãos eram como sempre foram: mãos de artista. Seu jeans era apertado e tinha uma mancha de tinta. Você conversava com os seus amigos, um pouco acelerado, toda uma expressão corporal, e eu o observei e pensei que um cara como você nunca iria notar uma pessoa como eu.
   E com surpresa recebi a sua solicitação de amizade. Você diz que desde a primeira vez que me viu quis ser meu amigo. Me enfiei no seu grupo só para tê-lo por perto, mas você, relapso, mal ficava entre eles, sempre atrasado, sempre correndo. 
   Mas às vezes você ia fumar e me chamava para ir com você, e mesmo asmática eu ia, porque gostava de te ver fumando e falando suavemente naqueles momentos, com tanta classe. Como um personagem de filme dos anos 50; com trejeitos felinos.
neverland 42
   E no ano passado nós rimos, nos lembrando daquela vez que marcamos de nos encontrar na sua casa, logo no início de tudo, e eu, na pressa de te ver, sempre ansiosa e deslumbrada, cheguei uma hora antes, dando de cara com a porta, pois você não estava em casa ainda. Eu tenho uma foto da porta fechada, o número 42 pendurado. Tirei enquanto estava sentada nos degraus, onde fiquei te esperando, lendo um livro, nem lembro qual. 
   Nós mal nos conhecíamos naquela época. Quando você chegou compartilhamos um abraço breve e frouxo. Mas você esteve lá de forma constante e firme. Por um tempo. Como naquela vez, entre as muitas em que eu bebi muito e vomitei sobre mim mesma; mas naquela vez eu não me limitei a beber e vomitar e capotar, acordando duas horas depois enjoada. Naquela noite eu entrei em um quarto, tranquei a porta e tentei me jogar da janela do seu apartamento. Você, que nem me conhecia, arrombou a porta e me puxou, expulsou as pessoas assustadas e curiosas, despiu minha camiseta e colocou em mim a sua camisa azul. Eu ainda tenho a camisa. Eu ainda lembro do que te disse, os meus motivos, e ainda lembro que você tentou me consolar. Eu fiquei mortificada no dia seguinte, mas você entendeu sem me julgar.
   E assim seguimos, nos conhecendo, construindo confiança, rindo, bebendo até cair, quase chorando às vezes, ouvindo um ao outro; e com o passar do tempo, melhores amigos, desafiando um ao outro, ora artisticamente, ora com comentários passivo-agressivos. Você sempre atrasado e eu sempre adiantada. Eu querendo te abraçar forte, e você se desvencilhando dos meus braços muito rápido. Isso nunca mudou, nem com os anos de amizade. E toda vez que nos abraçamos eu me pergunto, com mágoa, por que você se afasta tão rápido. Eu te olho abraçar outras pessoas e são abraços demorados. Abraços como abraços devem ser.
   Vieram outras amizades — para você, e eu me tornei figurante. Eu não sei mais o que acontece na sua vida. Você também não sabe o que acontece na minha.
   Em algum momento nós desconstruímos a confiança e o riso ficou mais fraco e paramos de beber juntos. Só eu caía, você ficava em pé a noite inteira. Eu chorei, você eu não sei. Nossos desafios deixaram de ser ligeiramente agressivos e se tornaram abertamente tóxicos. Nós não sabemos porque continuamos. Você me pergunta o que eu quero de você, porque não o deleto como faço com todos, e eu não sei responder. É que eu te amo. Às vezes.
   Mas não consigo deixar de sentir que não pertenço ao seu mundo de pessoas inteligentes e interessantes e bonitas; atores, modelos, artistas plásticos, fotógrafos e músicos.... e gin e tônica e coisas sofisticadas. Eu não consigo deixar de sentir as coisas deslizando para bem longe do meu alcance. Eu não consigo sua atenção, uma resposta, reciprocidade. Quando nos encontramos eu não te sinto empolgado por me ver. Como se não importasse. Às vezes eu te amo muito, e às vezes te amo quase nada.
   Você cresceu, e eu permaneci pequena. Você foi a lugares, eu continuei parada. O número 42 não está mais lá, nem mesmo com a porta fechada para que eu fique apenas olhando. Eu nem sei onde você mora mais. 
   Então esse ano eu não fiz montagem engraçadinha e nem textão. Eu te mandei uma mensagem breve, disse que te amo. Você não respondeu. Você quase nunca responde. Sempre correndo.
   Mas tudo bem, não é por isso que você vai ter um aniversário menos emotivo. Outras pessoas te mandaram montagens e textões, seus novos melhores amigos e os antigos que você, de alguma forma, conseguiu tempo para manter.
    Feliz aniversário. Eu te amo?

domingo, 15 de outubro de 2017

rastros

     A paixão é como uma bolha de sabão.
   Um sopro suave faz com que ela se expanda, ganhando forma lentamente, brilhantemente, ficando maior e maior, gotejante de cores vibrantes... 
   Ela flutua sob o céu de um dia claro, voa para o mais distante que consegue, à mercê da violência do vento, e no ápice de sua beleza ela estoura, deixando para trás rastros incertos de sua existência fugaz.




rastros

sábado, 14 de outubro de 2017

vizinhos? melhor não tê-los! mas se não os temos, como sabê-los?

   Ontem eu estava indo comprar cerveja e subi pela minha rua, caminho que eu nunca faço. Eu sempre a desço. E lá pra cima, território semi-desconhecido, eu vi uma casa pintada com o verde mais bonito e brilhante de todo o mundo. É um verde tão verde, que reluz e deixa verde a parede branca do outro lado da rua (a minha rua não tem vizinhos de frente).
   Quando pintaram a "minha" casa de verde, eu odiei. Achei brega. Parecia um abacate gigante e disforme. Mas se fosse esse verde, bem que eu teria gostado.
   Talvez, ponderei, aquela casa tenha sido recém-pintada. Ou, talvez, a parede do vizinho seja sempre mais verde.
   Os meus vizinhos, que vivem entre ficar no mais completo silêncio e gritar baboseiras, hoje estão animadíssimos. Tem alguém tocando violão, eles estão cantando Legião Urbana, e sempre que acabam uma música, batem palmas e dão gritinhos empolgados. 
   Não conheço meus vizinhos, nenhum deles. Só conheço suas vozes, que gritam coisas uns para os outros, e eu ouço através da parede, que nem é tão fina assim. Não os conheço, mas os detesto por existirem. Entretanto, hoje bem que me deu vontade de vestir uma das minhas roupas novas e chegar lá como quem não quer nada. Não iria querer o churrasco e nem a cerveja não, eu só queria sentar com eles, cantar Legião Urbana e bater palmas entre uma música e outra. 
   É interessante como essas rodinhas que se propõem a tocar e cantar Legião Urbana sempre fazem as músicas da banda soarem mais felizes do que são. Porque ouvir Legião Urbana sozinho, trancado no seu quarto, é pedir para acabar com o pulso cortado.
   Mas nas rodinhas não. Nas rodinhas, Legião Urbana é a banda mais animada e positiva que já existiu. Até eu ficava empolgada quando cantava Legião em coro com meus colegas. Uma vez nós cantamos música após música de pé, pulando, e fizemos uma guerrinha de tinta no apartamento do Sillas ao som de nossas próprias vozes cantando Tempo Perdido. Éramos tão jovens! O telhado ficou com marcas de tinta vermelha por uns bons anos, até que ele teve que pintar de branco para entregar o apartamento...
   E esses vizinhos, eles são inventivos. Até fizeram um medley com Tempo Perdido e uma música do Michel Teló, o que eu teria achado uma barbaridade uns anos atrás, mas hoje me provocou indiferença. É isso que a vida fez com o meu espírito.
   

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

esmurrando portas


   O que mais eu posso escrever, que já não tenha escrito das mais variadas formas, utilizando os mais variados sinônimos e adjetivos, e até dispondo de palavras inventadas, nos últimos 21 anos?
   Tudo o que eu fiz na vida foi escrever. Escrever, escrever, sentir e escrever, escrever e sentir, mesmo quando o que eu estava escrevendo e sentindo era ridículo, maçante ou simplesmente indigno de ser trazido ao mundo, que dirá lido...
   Chega um momento que a mente pede arrego. O corpo segue o embalo. O meu está como não ficava há muito tempo, a ponto de se curvar sobre si mesmo, a ponto de quebrar como se fosse um objeto de gesso que derrubam no chão.
   Estava chorando de novo. Eu queria socar a parede, quebrar coisas, me quebrar, levantar da posição fetal em que me mantinha, e pegar minhas lâminas. Cortar minha barriga até que as tripas saíssem para fora, até que a mágoa se extinguisse. Pensei em pular da janela do meu quarto, mas é só um andar. Talvez eu quebrasse o pescoço ou rachasse meu crânio. O mais provável é que eu quebrasse os meus dentes. Os da frente.
   Pensei, também, em pular na frente de um trem. Com a minha sorte, acabaria com as duas pernas amputadas, porém viva, e uma multidão secretamente sedenta por sangue me xingaria por lhes causar tamanho inconveniente (mas bem que eles filmariam tudo e se sentiriam importantes quando recebessem alguns likes).
   Eu penso repetidamente em pegar uma faca, a de cabo cor de laranja que a minha vó vive escondendo, a única de ponta afiada, e enfiar no meu coração, dar uma torcida, ou me apunhalar quantas vezes tivesse forças para fazê-lo, sentindo o sangue jorrar para todos os lados, atingindo minha própria cara. Talvez um dia, quando eu estiver desesperada o suficiente...
   Hoje eu não estou desesperada, eu estou triste. Meu corpo está leve, mole como macarrão cozido. As palavras que eu ouço são sempre as mesmas desculpas esfarrapadas, e os atos são sempre os mesmos, contraditórios, e as pessoas são sempre iguais, covardes, e nada disso me traz acalento. E eu? Quem sou eu para essas pessoas? No fim, eu sou a louca que cruzou seus caminhos, e que um dia, um dia bem próximo, eles vão ignorar porque é mais fácil assim.
   Eu permaneci na minha cama, as lágrimas grossas não paravam de rolar, e fiquei assim, chorando abraçada a um travesseiro, tentando fingir que tinha um ser humano entre os meus braços. Tentando simular calor humano.
   Amanhã eu vou ao cemitério, é lá o meu porto seguro, não nos braços do fantasma sem rosto que eu imagino todas as noites. O bom filho à casa torna, é o que dizem.
   Eu vou sentar em um dos bancos, porque acho desrespeitoso deitar sobre túmulos, e vou beber minhas cervejas quentes e tomar meus 20 comprimidos de diazepam. Vou apagar, capotar no chão e acordar quando começar a chover na minha cara ou quando alguém começar a respirar sofregamente sobre mim. Mas tudo bem, eu gosto da chuva. E estou acostumada ao resto.
   Eu estava a caminho do psiquiatra quando vi uma velha falando sozinha na rua. Falava e gesticulava consigo mesma. Era uma sem-teto. Eu pensei, temerosa: "essa serei eu daqui uns anos", mas ao analisá-la melhor, prossegui com o pensamento: "exceto que eu não seria tão elegante". Uma mendiga elegante! Esse é o tipo de coisa que vemos em São Paulo. Ela estava com os cabelos desgrenhados, a pele suja e não tinha dentes, mas trajava um sobretudo sobre o seu corpo curvilíneo, o que lhe garantia elegância suficiente.
   Eu não estou criando arte aqui. Eu estou escrevendo porque preciso escrever. Me entenda, eu preciso escrever! 
   Eu estou cansada de esmurrar portas de aço com dobradiças soldadas.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!

sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

a morte do intelecto

Eu estive lá.
Eu sofri 
um pouco.
Eu sentei em cadeiras desconfortáveis.
Eu sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina pela qual 
os poetas correm.
 Inventei o alfabeto 
depois de observar o vôo das garças 
que fizeram letras com suas pernas.
 Sou um lago na planície.
Uma palavra 
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Sou uma blitz
no inarticulado. 
Eu sonhei 
que todos os meus dentes caíram 
mas a língua sobreviveu 
para contar a história. 
Porque sou um silêncio 
poético. 

(Autobiografia - Lawrence Ferlinghetti)

   A noite passada eu tive um sonho, a princípio triste. O conteúdo principal não interessa. Mas eu chorava, e tinha alguma coisa prendendo minha fala. Eu puxava minha língua para fora, ela era gigantesca, e eu estava a ponto de cortá-la com uma tesoura. Impedia a mim mesma. Acordei. Voltei a dormir. Sonhei que tinha uma gosma preta e enorme, feito chiclete, no céu da minha boca. Eu puxava, puxava e ela não saia por completo nunca. Me angustiava, me sufocava, me impedia de falar. Eu estava na escola Benedito Calixto, e abandonava a aula na metade, puxando a gosma, mas quanto mais eu puxava, mais ela vinha.
   Estava na rua. Tinha um monte de terreno baldio e gente suspeita. Tentava esconder o celular dentro da calcinha, mas não conseguia, e o colocava no bolso da minha mochila. Caminhava desconfiada, olhando para os lados, ainda puxando a gosma e tentando encontrar o meu caminho. Alguns homens me seguiam. Ouvia um deles perguntar para um grupo de outros homens se eu era dali, diziam que não. Dois deles me paravam num corredor estreito, anunciavam o assalto, e eu protegia minha mochila, tornando óbvio que o que interessava estava ali dentro. Tentava lidar com a gosma e com a situação.
   Eu dizia: "por favor, me deixem ir! eu sou apenas uma estudante!". Esperava pelo momento em que eles sacariam suas armas, mas o que eles tiraram dos bolsos foram mesmo adagas, prontos para me picotar se eu não lhes entregasse alguma coisa. Mas eu teimava, não lhes daria nada.
   Me atiraram ao chão. Eu protegia minha mochila. Eles pairavam acima de mim com suas adagas e eu implorava: "não me matem, eu sou apenas uma estudante! não me matem, por favor! sou apenas uma estudante!". Implorava, mas não cedia.
  Eles me achavam patética, implorando ridiculamente no chão, com gosma grudenta saindo da boca, e sangue, que viera de algum lugar. Então  eles jogaram as adagas ao meu lado e foram embora, enojados com a minha covardia.
   Eu ainda estava no chão, recolhendo as coisas que haviam caído da minha bolsa, quando surgiu outro homem, com outras intenções, e com arma em punho. Eu peguei a adaga e o matei antes que ele tivesse chance de qualquer coisa. Corri, temendo que seus companheiros chegassem para me matar.
   Quando penso na morte, de forma natural, num acidente ou num assassinato, eu penso que não quero morrer. E quando eu penso na existência, eu penso em suicídio. Tem uma grande diferença entre morrer e se matar. Entre existir e viver.    
   A última vez que eu tentei suicídio, não tive medo. Eu tive certeza. Depois de uma festa familiar — acho que o aniversário da minha avó —, eu subi para o meu quarto com algumas latinhas de cerveja e tomei cartelas dos mais variados medicamentos, que tinha à minha disposição graças aos meus meses de rato de laboratório no HC, sob a supervisão do meu manipulador, mas querido doutor Marcelo (que por sinal, eu acredito que deveria tomar tantos remédios quanto eu, para tratar de sua sociopatia. É apenas o meu diagnóstico, você pode procurar uma segunda opinião, querido). 
  Entre o repertório: Topiramato, bupropiona, lítio, quetiapina, abilify, gabapentina e o temido heimer, que serve para tratar, como o nome sugere, alzheimer, mas estava sendo testado em mim, "simples" paciente portadora de transtorno mental. Àquela altura eu tinha uma sacola de supermercado cheia de medicamentos que sobravam entre uma consulta e outra. Todos eles não caberiam em mim, escolhi, portanto, quase que aleatoriamente.
   Coloquei dois colchões no chão, um ao lado do outro, para que eu não fosse ouvida me debatendo caso tivesse uma convulsão. Tranquei a porta do meu quarto, mas sabia que ninguém entraria, a não ser que eu passasse muitos dias sem dar o ar da minha graça na cozinha. Coloquei música para tocar on repeat no celular: o álbum era o Meteora, do Linkin Park. E por fim deitei, coloquei os fones e dormi quase que de imediato. Não sei se os remédios já faziam algum efeito ou se eu simplesmente fui capaz, por uma vez na vida, de desligar o meu cérebro. Não chorei. Eu estava certa do que queria e estava certa de que aquela vez era para valer; não pediria ajuda no último momento, não acordaria nunca mais. 
   Ledo engano. Dormi, descobri depois, por aproximadamente 30 horas, e acordei, ah, sim, eu acordei, ao som de Linkin Park. Estava atordoada. Não é figura de linguagem, eu estava atordoada. Era como se eu estivesse bêbada, só que muito pior. Minha cabeça girava insanamente, feito um pião, e ao me levantar, com esforço, cambaleei pelo meu quarto, tentando me segurar à alguma coisa, mas nada parecia estar ao meu alcance. Não conseguia focar minha visão em lugar algum; quando eu olhava para as coisas era como se estivesse vendo-as multiplicadas por mil. Minha pele ardia, como se eu tivesse ficado exposta ao sol por todo o tempo que dormi. A despeito disso, tremia loucamente, morrendo de frio. Meu coração vibrava rapidamente, desconfortável dentro da minha caixa torácica. Não havia o menor traço de estabilidade no meu corpo, por dentro ou por fora, e menos ainda na minha mente. Eu estava confusa, não sabia quanto tempo havia se passado. Não sabia se estava viva ou morta. Tentava respirar fundo, fazer todas aquelas sensações passarem, mas era inútil. Comecei a chorar. Por estar tão fodida, pela agonia de tudo que estava acontecendo ao meu corpo.
   Consegui, com alguma dificuldade, destrancar e abrir a porta, e chamei minha madrasta, que estava no quarto ao fim do corredor do meu. Ela veio, e eu, deitada, porque não conseguia mais me manter de pé, expliquei, voz pastosa e difícil de sair pela garganta, o que havia feito e que precisava de ajuda. Meu irmão caçula, à época com uns 4 ou 5 anos, me assistia, e eu sentia vergonha e pesar por fazê-lo me ver daquela forma. Ela disse "ai meu Deus", e me explicou que eu não havia saído do meu quarto por mais de um dia. Foi chamar meu pai, que surgiu em seguida, nervoso, dizendo coisas como "eu não acredito que vou ter que passar por isso de novo", e outros despautérios que não cabiam na boca de um pai vendo sua filha naquela situação, e que de forma geral não ajudaria em nada. A muito custo, minha madrasta o convenceu a me levar ao hospital. Ele relutava com a ideia, desgostoso de ter que perder seu tempo dirigindo seu estorvo de filha, que não estava morrendo.
  Minha vó estava no andar abaixo, aflita. Entramos no carro, eu, meu pai e minha madrasta. Meu pai dizia palavras duras, brigava comigo, mas aquela era a menor de minhas aflições. Os efeitos físicos eram muito mais devastadores.
   Chegamos ao hospital. Meu pai avisou que não ficaria ali. Entramos, ele apresentou a situação, deu meus dados, me deixou sentada numa cadeira esperando pelo atendimento do cardiologista, e foi embora. Me buscaria mais tarde.
   Eu mal conseguia ficar sentada, pois meu corpo estava pesado e cambaleava. Para a frente, para os lados. Eu tentava segurar minha onda. 
   Passadas algumas horas, fui atendida. O médico me perguntou o que eu havia tomado. Confusa, respondi alguns dos nomes que lembrava. O heimer me preocupava mais, por seus efeitos neurológicos. Ele me disse que era impossível eu ter tomado todos os remédios que alegava, pois se o tivesse feito, estaria morta. Além do mais, já era tarde para lavagem estomacal, então não havia nada a ser feito. Pois, doutor, eu tomei, e talvez eu esteja mesmo morta, porque esse mundo se encaixa perfeitamente na minha visão de inferno.
   O médico descrente fez o exame cardiológico, não sei dizer o nome. Analisou o que viu e me dispensou. Eu fui até o balcão de atendimento e expliquei que recebera alta, mas que não tinha condições de voltar sozinha para casa. Me disseram alguns sinto-muitos, não levamos pacientes às suas casas, e na falta de escolha, fui caminhando, em zigue-zague, para a rua. Estava em frente ao hospital, desnorteada, quando chegou o meu pai com seu carro, e dessa vez, em silêncio, dirigiu. Chegamos em casa. Eu subi para o meu quarto. Os efeitos duraram por meses. 
   Meus olhos ficaram fundos e negros, minha pele estava laranja, meu corpo não parava quieto nem mesmo por um segundo; eu era incapaz de ficar sentada por mais do que alguns minutos. Meu coração não desacelerava. Minha mente era incapaz de seguir uma linha de raciocínio. Eu não conseguia dormir, falava pouco, minha visão estava sempre turva. O pânico de que nunca mais voltaria ao normal era o que mais me afligia.
   Em casa ninguém falou nada sobre nada. Aos poucos, muito lentamente, em meio à solidão, a maioria dos efeitos foram se dissipando. Não estive completamente só, é verdade, porque tive Charles Chaplin. Quando minha visão deixou de ser borrada e minha cabeça parou de girar, aproveitei que tinha baixado, uns meses antes, todos os curtas de Chaplin, e os assisti. Com a inquietação de um corpo que não parava de tremer e se sacudir, mas assisti. E aqueles curtas fizeram bem ao meu espírito. O meu preferido é One A.M.
   Após muitos meses, minhas pernas foram aquietando. Meu corpo foi parando de tremer. Meu coração desacelerou. Eu voltei a conseguir sentar e assistir coisas mais longas do que 10 minutos. Mas nem tudo voltou ao normal. Minha mente não é tão rápida quanto já foi, eu mantenho problemas severos de concentração, que me afetam intelectualmente, e minha fala se tornou lenta e confusa; eu esqueço as palavras, repito pensamentos e gaguejo. Se já não gostava de falar antes, hoje em dia tal ato me provoca maior apreensão. Eu tentei matar meu corpo, e matei parte do meu intelecto. Esse corpo resiste, ele teima em continuar.
   

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Não era esse tipo de conversa que o poetinha tinha, deitado nu com seu amigo, mas acho que ele aprovaria

   Estávamos em duas pontas opostas do quarto; eu, escondida atrás de um livro, como de costume, e você eu não sei o que fazia para dizimar o seu nervosismo. Agora, atraídos feito ímãs, estamos no centro, nos encarando. Sou tomada por um impulso ou por seus braços, não sei, mas te beijo e você me beija, primeiro muito lentamente e sem saber o que fazer com as mãos, e depois com mais intensidade e meus braços ao redor de você. Assim começa a conversa. Sua barba por fazer arranhando suavemente o meu rosto, meu batom desmanchando na sua boca, seu lábio inferior entre os meus lábios canibais, duas línguas trabalhando sem premeditação, porque essas coisas acontecem de forma natural, mesmo se pensadas muitas vezes antes. Meus óculos ficam embaçados, marcados pela oleosidade natural da sua pele.
   Paramos para respirar. Tento limpar as manchas de batom de mim, em vão. A sua boca e o seu rosto também estão ligeiramente vermelhos, pelo batom, ou não, mas eu não ligo, apenas o admiro através das minhas lentes borradas. O livro, que eu ainda segurava durante o ato, tal qual uma criança com seu cobertor da sorte, jaz atrás de você.
   A primeira coisa que você despe do meu corpo são os meus óculos. Os coloca, cuidadosamente — pernas fechadas e lentes para cima —, sobre uma mesinha ou uma estante ou o que estiver disponível, não sei em que quarto tudo se dá, mas eles ficam em segurança.
   Eu vou ter que chegar muito, muito perto de você para conseguir te enxergar bem. É a miopia. Analiso seu rosto. Passo meus dedos pelos seus olhos cansados, beijo-os, esperando que sempre tenham esse ar inocente.
   Nossos corpos colados, suas mãos se precipitam sob a minha saia azul, subindo  por minhas pernas com firmeza, e parando por um momento na cinta-liga preta, mas por fim encontrando seu caminho para a calcinha de renda e o que ela esconde. Você fala comigo através dos seus dedos, me toca, mãos de trabalho escravo, me aperta, mostrando que os anos de peão valeram de alguma coisa. E eu reajo com um olhar tímido ou uma mão entre as suas pernas, provavelmente os dois, encontrando ali, no volume pulsante ou na ausência do mesmo, a resposta para a minha dúvida. A saia cai aos meus pés.
  Te guio para a cama, não pisamos no livro — por instinto. Você cai sentado, desajeitadamente, e com menos graça ainda me coloco no seu colo, mãos nos seus ombros, e te beijo, me esfregando em você, já sem pudor. Suas mãos encontram os cadarços das minhas botas novas, tiram-as, e às minhas meias. Você gosta de pés, eu tenho dois.
   Arranco sua camiseta, não sem antes sentir o seu cheiro, memorizando-o de forma abstrata, e você tira a minha blusa e meu sutiã e lambe os meus piercings; nossas peles roçando uma na outra iniciam seu próprio diálogo. 
   Deitamos na cama, conversando através de nossos seis sentidos: Visão, Olfato, Paladar, Audição, Tato e Poética.
   A cinta-liga vai pelos ares, a calcinha de renda também. Nos lemos em braile, cegos de tesão. Minhas cicatrizes provocam interesse, você se demora nelas, e com saliva eu rabisco mil poemas que sabem que são efêmeros e insistem em sê-lo, na sua pele quente. Desço os lábios cada vez mais, olhando nos seus olhos vez por outra. Seus dedos agora se enroscam nos meus cachos, que também caem sobre o seu corpo, provocando-lhe cócegas.
   Abro o botão da sua calça, desço o zíper. Te liberto de uma só vez dela e da sua cueca. Observo, ajoelhada, com uma de suas pernas entre as minhas. Demoro minha mão direita no seu peito, na sua barriga, desço com as unhas longas e pretas para as suas coxas, suas pernas, e delicadamente me curvo, meu rosto acima de você, respirando mais rápido do que o normal, te provocando um arrepio na espinha, e por fim mergulho, te ouvindo com o meu paladar. Sua respiração perde a calma, sons descontrolados escapam por entre os seus lábios; seu diafragma se contrai e expande, apoiado sobre as suas vísceras, enquanto você pousa uma mão no topo da minha cabeça. A sua porra tem gosto de amora. 
   Deito ao seu lado e compartilho contigo o gosto, beijando sua boca calculadamente. Seus dedos apertam meu rosto e sua boca devora a minha. Aprendemos novos idiomas no corpo um do outro, e mesmo exaustos não desistimos da preleção.
   Eu escalo o seu corpo e te insiro dentro de mim, camisinha não, só pele e mãos e olho no olho e suor e peças de dois corpos se encaixando num vai-e-vem ritmado, como um quebra-cabeças dinâmico que faz circular eletricidade, de mim para você, e o oposto também, culminando em uma explosão violenta que estoura fogos de artifício nos nossos cérebros.
   Agora a exaustão é paralisante. Anestesiados, dormimos; não agarrados, mas sinto seu braço tocar o meu. Há conforto.
   Acordo, não sei quantas horas ou quantos dias depois, deitada de bruços. Algumas partes de mim ainda estão vibrando. Você paira sobre mim, consigo sentir a concentração enquanto a ponta de uma caneta corre nas minhas costas. Você está nu. Suas ideias chegam em cascata, com clareza e energia. E eu sinto, dentro de mim, cada vírgula da sua genialidade.