domingo, 4 de outubro de 2015

Condenados

 homenagem aos meus amigos que partiram. Desenho e tatuagem by Luana Diphusa

   Por muito tempo acreditei que a minha vida começou a ir ladeira abaixo ali pelos 16 anos, mas a verdade é que existem muitas lembranças que indicam um transtorno que sempre esteve presente, ainda que sem nome. Enquanto criança, 6 ou 7 anos, sempre tive uma sensação esquisita, como se estivesse flutuando, como se a minha vida e todas as pessoas ao meu redor não fossem reais. Eu chorava, arrancava meus cabelos, via seres monstruosos nas sombras quando estava sozinha...
   Quando tinha 8 anos, meu avô materno ligou para a minha avó paterna e deu o ultimato: "venha buscar as crianças ou eu os mandarei para a Febém". Hoje não tenho absoluta certeza, mas imagino que não é tão fácil assim "enviar" crianças para a Febém (ou qualquer que seja o nome da entidade atualmente), porém à época aquela era uma ameaça muito assustadora. Minha vó foi nos buscar, claro. Entre indas e vindas, posso dizer que passei a maior parte da minha vida sob seus cuidados. Não fui a pessoa mais fácil de se criar, como muitos parentes constantemente jogam na cara. Comecei a engordar muito aos 9 anos, e nessa época já sentia o peso do que hoje sei que era depressão. Parei de estudar, parei de tomar banho, fui expulsa de casa pela minha mãe, com quem estava morando na ocasião, e a pré-adolescência nunca é fácil...
          A primeira vez que pensei em suicídio foi aos 11 anos. Numa dessas festas de fim de ano que não comemorávamos na casa da minha vó, simplesmente bateu um vazio e tristeza enorme. Não pensei, fui a cozinha, peguei uma faca qualquer e na varanda de casa, enquanto minha família assistia TV, tentei cortar os pulsos. Talvez tenha visto uma cena semelhante em algum filme, não sei. Fato é, a faca não dava conta do trabalho. Era uma dessas facas de serra, velha e sem corte. Pode soar como uma piada para algumas pessoas, e pode ser insignificante para outras, mas a verdade é que quando penso em desespero, essa noite sempre me vem à mente. Meu pulso ficou levemente ferido e ninguém nunca soube. Eu também não saberia explicar aquele tipo de sentimento, assim como não conseguia explicar quando acordava pensando que estava tendo um ataque cardíaco (síndrome do pânico) e minha vó mandava eu parar de graça e ir dormir, como se fosse algo que eu pudesse escolher. Por anos me cortei sem que ninguém nem sequer suspeitasse. Abandonei a escola novamente, deixei de sair de casa, perdi a vontade de viver, e morri de muitas formas nesse período.
   Com a chegada da internet, aos 14 anos descobri que outras pessoas sentiam o mesmo. Outras pessoas se cortavam, outras pessoas pensavam em morrer, outras pessoas tinham histórias tão tenebrosas quanto as minhas para contar... E foi nessa época também que minha família descobriu que eu me cortava. Por mais estúpido que seja, quando meu pai descobriu, primeiro culpou a internet, depois me deu uma das maiores surras da minha vida.
   Conheci o Steve numa comunidade chamada "Eu Me Corto..." e ao longo dos anos nos aproximamos e nos afastamos diversas vezes. O Steve tinha sofrido, assim como eu, abuso sexual dentro da própria casa, e experimentou a depressão da mesma forma que eu: de forma gradual, sem que ninguém percebesse. A família dele também culpava a internet pela tristeza e revolta que o fazia se cortar, e que acabou levando-o, no dia 22 de agosto de 2006, a cometer suicídio. Queria poder dizer que fui a melhor amiga dele. Queria não sentir culpa. Mas sinto. Ele vivia me contando sobre a vontade que sentia de se matar, vivia descrevendo o ato: ele pegava uma das armas de fogo do pai, sem que este soubesse, e a levava à boca, à cabeça, esperando ter coragem para puxar o gatilho. Não tenho defesa, estou entre as pessoas que não acreditou nele! Pensei que ele quisesse atenção, que nunca teria coragem para tanto... mas um dia ele teve. Não é que eu não amasse. É incompreensível pensar que uma pessoa que ouviu todo tipo de gente (médicos, enfermeiros, professores, psicólogos, conhecidos, parentes, amigos) desdenhar suas próprias vontades e tentativas fosse tão cruel, mas eu, aos 16 anos, mergulhada em mim mesma, fui. Talvez eu pudesse ter salvo a vida dele. Agora não importa.
   A morte dele me pegou em cheio. Acho que até hoje nunca chorei tanto na minha vida quanto naquele dia... precisaram me dopar para que eu parasse de chorar e gritar. O mundo todo doía.
    Não é exagero dizer que a morte do Steve mudou toda minha vida. Muitas das minhas escolhas foram guiadas por essa experiência. Minha depressão aumentou gritantemente, amigos não aguentaram todo aquele "drama" e me abandonaram, assim como eu o abandonei.
   Na comunidade "Condenados" do Orkut encontrei centenas de pessoas com histórias semelhantes ou até piores do que as minhas e do Steve. Pessoas que lutavam todos os dias para continuar vivendo, para manter um traço de sanidade. Pessoas que eram esnobadas pela sociedade, pelos próprios familiares. Pessoas que foram taxadas como imaturas, mimadas e vagabundas por não conseguirem se adaptar ou mesmo levantar da cama para tomar um banho graça à maldita depressão! Imagino que grande parte dessas pessoas que conheci e esbarrei virtualmente não aguentaram e se mataram, sumindo do mundo, da internet, caindo no esquecimento.
   Infelizmente, a dor de perder uma pessoa querida para a depressão foi algo que se repetiu ao longo dos anos. Em 2008 outro amigo, Antônio, partiu e deixou um filho de poucos meses. Em 2012 o Henrique não aguentou e também se foi. Em 2013, a Juliana, enquanto conversava comigo, tomou comprimidos e morreu... e não foi assim fácil, foi outro grande sofrimento. Ela não morreu instantaneamente, agonizou por dias.
   Apesar de 1 pessoa se suicidar a cada 40 segundos, a doença que leva a tal ato ainda é uma espécie de tabu. É vista como frescura, como coisa de gente fraca. É vista como uma doença que pode sumir de acordo com a vontade do portador... a próxima vítima dessa doença pode ser eu, pode ser meu amigo Fernando, pode ser um vizinho que você nunca imaginou, pode ser você... e ninguém realmente se importa.