terça-feira, 21 de julho de 2015

i want to eat your heart

    Conheci o Marcelo em um momento que estava tão deprimida e sem esperanças, que levantar da cama para tomar banho, comer ou mesmo ir ao posto de saúde para passar nas consultas era um esforço enorme. Na minha primeira consulta com ele, que estava marcada para as 8 e meia da manhã, ele atrasou quase 4 horas. Quando finalmente fui atendida (a beira de lágrimas) já estava tão saturada pela falta de comprometimento e respeito, que meu primeiro instinto foi detestá-lo, assim como detestei todos meus outros psiquiatras. Várias consultas e muitos atrasos depois, fui forçada a aceitar o fato de que ele nunca chegaria no horário. Eis um hábito que abomino: deixar as pessoas esperando como se o seu tempo fosse mais valioso que o dela.
    Pra mim o Marcelo nem fedia e nem cheirava. Não lembro sobre o que falamos nos primeiros meses, nem se produziu algum resultado. Foi depois de minha curta estadia nas Irmãs Hospitaleiras que comecei a notá-lo como alguém além de um psiquiatra, e penso que foi quando ele passou a me levar a sério também. Naquela época ele se tornou um grande amigo. Pra quem está de fora pode ser difícil entender. Acho que dos poucos amigos com quem comentei sobre isso tudo, a maioria deve pensar que tudo não passou de coisa da minha cabeça. Não digo que o Marcelo tenha nutrido o mesmo tipo de sentimentos que eu *nutro* por ele, porém hoje analisando de forma fria e distante, posso ver que ele cruzou certos limites da relação médico/paciente. Se alguém aqui já ouviu um "eu te adoro", "eu nunca vou te abandonar", e recebeu poemas e abraços demorados de um psiquiatra/psicólogo, me diga. Se o médico de alguém já chorou no meio da consulta, sou toda ouvidos. Pode não ter sido intencional, mas ele deu entrada aos meus sentimentos idiotas.
    No começo é tudo lindo. Penso: eu posso conviver com esse sentimento de forma passiva. Posso amá-lo sem precisar que ele me ame de volta. Posso pensar nele e sentir essas borboletas no estômago sem que isso me faça sofrer... O Marcelo foi o que me elevou. Mas pra um borderline, a elevação é tão fácil quanto a queda brusca que resulta em posição fetal e desespero.
    Depois vem a tensão sexual e o sentimento de posse... O ciúme sempre foi um dos meus maiores "defeitos". É uma coisa que machuca o emocional e se manifesta no corpo. Você já sentiu tanto ciúme que cada célula do seu corpo parecia estar se contorcendo? E o Marcelo parece um ímã. Todas as mulheres naquele prédio, desde as enfermeiras até as pacientes, se derretiam. Não foi diferente quando ele me levou para outro hospital ao sair do posto de saúde. Na verdade, isso se intensificou. Não era uma questão apenas de beleza, mas de carisma. O jeito que ele fala, que ele anda, os maneirismos, é tudo sexy. E eu sou um nada. Mesmo que ele fosse olhar dessa forma para uma paciente, essa paciente certamente não seria eu.
    O que se passou durante os quase 3 anos onde ele foi meu psiquiatra sempre será um incógnita pra mim. Nos dias que estou mais propensa a pintá-lo como o abusador de sentimentos, como o manipulador que algumas pessoas pensam, minha mente cria a versão onde ele fez tudo de caso pensado, pra ver se conseguia. Outras vezes penso que ele foi movido pela inexperiência (ele terminou a especialização em psiquiatria um pouco antes de começar a trabalhar no posto de saúde) e meteu os pés pelas mãos. Fato é, um cara que lida com pessoas instáveis deveria ter um pouco mais de tato e saber controlar os próprios sentimentos. Tem, porém, o fato de que uma outra paciente, com quem esbarrei um dia desses, disse que o Marcelo é mais doido do que os pacientes, mas não quis entrar em detalhes.
    Eu não sou espontânea. Quem me conhece pessoalmente sabe disso. Nunca toco ninguém a menos que seja tocada primeiro, e mesmo assim com reservas; não faço coisas que me ridicularizem, tudo que mostro ao mundo é calculado. Em questão de segundos eu vejo minhas opções e escolho a mais neutra, a que vai me expor menos. Com o Marcelo eu perdia essa noção. Disse e fiz coisas que ainda me mantêm acordada a noite, meio que corando de vergonha, meio que me odiando por ter feito papel de trouxa.
May, 2002
    Uma vez, um dos pacientes do centro de reabilitação de drogas que ele trabalhava tentou escapar, e o Marcelo apanhou do cara ao tentar impedir. Quando cheguei à minha consulta e o vi todo machucado senti tanta raiva e pena... e num dos meus momentos mais atrevidos e espontâneos, peguei a mão dele e beijei um dos ferimentos. Ele levou aquilo da melhor forma que pode. Primeiro pareceu que iria puxar a mão, mas depois deixou (em fração de segundos), e rimos, mas não falamos daquilo.
    Foi pouco. Eu sou excêntrica e tudo no Marcelo me impelia a explorar essas excentricidades. Eu queria beijar as mãos dele, os olhos, cada uma de suas pintas... beijar sua cabeça, abri-la com um bisturi e beijar seu cérebro. Eu queria comer o coração dele. Não se trata de poesia. Se trata de visceralidade. 
    Ninguém nunca me conheceu e nunca conhecerá tanto quanto o Marcelo... e tenho certeza de que ele nem se lembra o quanto me conhece. Que ele não se lembra do meu rosto, do meu nome, do meu caso. Eu nem existo na vida dele mais. Ninguém, nem mesmo a Giuliane, nunca me tirou tanto do sério. 
    (... eu poderia fazer as piores coisas com ele, porque as melhores não ilustra meus sentimentos com precisão.)
    Às vezes penso em matá-lo. Aparecer onde ele trabalha com uma arma e abrir meu caminho até ele com balas, atirar nele, e pra finalizar atirar em mim mesma. Não porque eu o odeio .... por ele ter me deixado sentir o que sinto e depois ter me dispensado como se eu fosse uma puta.... , mas porque eu o amo tanto que apenas um gesto estrondoso desses mostraria o quanto. 
    Sonhei com ele a noite passada. Ele estava sentado em um sofá ao meu lado e dizia "lembra aquela vez que eu apanhei de um paciente e você..." e eu completava: "beijei seu ferimento", e a lembrança aparecia dentro do meu sonho. Ele continuava: "foi naquele momento que eu me apaixonei por você".......... eu sentia meu estômago cheio de borboletas canibais voando ferozmente. Ele falava: "mas isso nunca daria certo", e eu dizia:  "por quê? você não é mais meu médico". Nos olhávamos. Eu pegava as mãos dele e as beijava, beijava, beijava, beijava, lambia os dedos dele, beijava-lhe os braços.
    Embora eu saiba, racionalmente, que ele jamais corresponderia; embora eu saiba que ele não faria isso por ética e sim porque eu sou um monstro obeso e disforme, meu inconsciente me brinda com sonhos onde as coisas são diferentes, e secretamente ele me amou.
    Seja como for, tudo isso prova que eu nunca vou ser uma pessoa normal, nunca vou amar de forma saudável, e cada dia mais descubro como sou feita para as coisas ruins.  (ponto final)